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Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades citou Marsile Ficino os males dos homens não terão fim...

O gosto do sangue e o amor pela prata são males incuráveis, quer se seja filósofo, quer não! disse Demétrios. E Platão nem sempre tem razão. Quanto à pequena Albizzi, talvez tenha razão: donna Fiora pode muito bem ter sido assassinada...

Quando? Por quem? E como é que tu sabes?

Quando? A noite passada. Por quem: Pietro Pazzi. Onde? porque tu te esqueceste de perguntar onde em casa do Mulherão.

Lourenço saltou da cadeira. O seu rosto ficou vermelho como um tomate.

Em casa dessa mulher?... Mas, o que é que...

O que é que a filha querida de Francesco Beltrami estava lá a fazer? Eis uma boa pergunta, à qual eu vou ter o prazer de responder, porque fui eu que, ao apunhalá-lo, impedi o corcunda de estrangular donna Fiora! Senta-te, senhor, para evitar a vertigem, porque vou abrir diante de ti uma extensão do inferno que Dante se esqueceu de mencionar...

Puxando para si um escabelo sobre o qual sentou a sua grande pessoa, Demétrios traçou para os seus ouvintes o calvário de Fiora desde que a tinham arrancado ao seu desgosto para a obrigarem a defender a própria vida. Fê-lo sem ênfase, com frases curtas, precisas e cortantes quanto baste. O médico sabia que a imaginação dos outros dois faria o resto. Mas, muito antes do fim do seu relato, Lourenço, atirando para trás a sua cadeira, que caiu sobre as lajes preciosas sem que ele fizesse tenção de a erguer, pôs-se a andar de um lado para o outro na sala, de cabeça baixa e as mãos atrás das costas. Quando Demétrios se calou, o Magnífico explodiu:

As religiosas de Santa Lúcia capazes de entregarem assim um ser que lhes foi confiado! Os Pazzi tramam as suas conspirações ignóbeis na minha cidade, mesmo por baixo do meu nariz! Fiora, tão bela, tão pura... entregue à prostituição!

Lourenço cessou bruscamente o seu passeio agitado em frente do médico grego:

E, naturalmente, ela está em tua casa?

Onde querias que estivesse? Só espero acrescentou Demétrios com um sorriso que não o vás dizer ao teu amigo frei Inácio? Atirava-nos aos dois para a mesma fogueira...

Pelo olhar que Lourenço lhe lançou, o grego compreendeu que fora longe de mais e desculpou-se, pondo a sua frase infeliz na conta da indignação sentida há pouco ao escutar o monge espanhol. E acrescentou à guisa de conclusão:

Só falta dizeres o que queres que eu faça.

Lourenço não respondeu. Reflectia. Mas o cónego-filósofo tomou a palavra:

Há uma coisa que me intriga, Demétrios e peço-te que me perdoes se te pareço indiscreto. Tu já não és novo e és um homem de ciência, muito afastado das loucuras da juventude. Por que te interessaste tanto por essa jovem? Pela sua beleza? Isso pode explicar-se num grego...

É verdade que não suporto ver arruinar uma obra de arte. Mas, no que diz respeito a donna Fiora, há outra coisa... Tu sabes que eu consulto os astros e que me acontece ter, do futuro, certas visões inexplicáveis. Ora, tive uma, quando na noite da giostra encontrei essa jovem...

O que é que tu viste? perguntou Ficino com curiosidade.

Prefiro não dizer. Mas no seguimento disso, consegui obter a data e o local de nascimento e fiz um horóscopo que, em certas coisas, se parece com o meu. Soube, com toda a certeza, que ela ia perder em breve o seu defensor natural, que teria necessidade de ajuda e decidi unir-me a uma estrela cuja luz era incerta, mas que, um dia, talvez emitisse um grande brilho...

Lourenço, que se reaproximava, escutara as palavras do grego. O Magnífico pousou-lhe uma mão no ombro: Se sabes o destino dela, por que razão me perguntas o que hás-de fazer?

Eu não sei tudo... e tu és o senhor. Agora sabes a verdade no que a ela diz respeito. Por que não fazer-lhe justiça? O pai dela só tem contra si uma mentira bem natural e ela é inocente. Não sofreu já o suficiente?

Se entendes por justiça restituir-lhe o palácio, os seus bens e pôr as coisas no estado em que estavam antes, é impossível. O povo não o permitiria. A imagem que tem dela é a de uma criatura diabólica. Seria preciso mantê-la escondida dia e noite. E depois... Eu não tenho assim tanta certeza da lealdade do defunto Beltrami...

Como é isso possível? indignou-se Marsile Ficino. Ele era o homem mais generoso, mais franco e mais honesto que eu já conheci... depois de ti!

Nesse caso, como é que explicas isto?

Lourenço foi a um armário e trouxe um pequeno cofre de malaquite, do qual tirou um rolo de pergaminho, que desenrolou e estendeu diante de si entre as duas mãos:

Angelo Donati, a quem confiei, de acordo com a Senhoria, a administração provisória dos negócios de Beltrami, recebeu do banco Fugger, em Augsburgo, o pedido de reembolso de uma letra, aceite por Francesco Beltrami e sacada por messire Philippe de Selongey, no valor de cem mil florins de ouro...

Livra! disse Ficino: que bela soma! Um resgate real!

Por que prisioneiro? O mais curioso é que, a pedido de Selongey, a soma foi depositada directamente no tesouro do duque Carlos da Borgonha. Eis porque, hoje, duvido da lealdade de Beltrami. Ele sabia da minha estreita aliança com o rei Luís de França e, no entanto, contribuiu e em que proporções para o tesouro de guerra do seu inimigo, que, portanto, também é nosso. Se o Temerário conseguir levar a cabo o seu sonho de império, a guerra estalará em breve entre nós, Sabóia e Milão e os seus aliados todo-poderosos... Eu chamo a isto traição!

Não julgues enquanto não tiveres na mão todos os dados do problema disse Demétrios. Deve ter havido uma razão... simples, mas que te escapa por agora. Confia nesse morto de quem gostavas e diz-me o que decides acerca da filha dele!

Fica com ela em tua casa! Está lá bem segura, na condição de não sair sob que pretexto for e que não veja ninguém. Ela é conhecida em Fiesole. Depois, veremos: tenho de reflectir.

O tom era seco e Demétrios pensou que seria pouco sensato, ou até perigoso, insistir. Lourenço, sabia-o, podia ser extremamente cruel se se achasse traído e as profundezas da sua alma tinham obscuridades insuspeitadas. O médico levantou-se para sair e saudou profundamente:

Direi as tuas palavras a donna Fiora, mas, antes de te deixar, posso pedir-te um favor?

Pede!

Aquela pobre criança está preocupada com uma certa Léonarde, que a educou e a quem é muito ligada. Essa mulher desapareceu no dia em que o palácio foi pilhado. Pode ser que donna Chiara Albizzi saiba onde ela está. Ora, eu não posso ir a casa dela sem levantar suspeitas e desagradar, talvez, à sua família...

Se Chiara souber alguma coisa, também eu saberei. Vai em paz! Assim que ele acabou de dizer aquelas palavras, o silêncio que envolvia o palácio Médicis explodiu sob os acordes de uma música alegre e com o eco de uma canção que acompanhava o passo dos cavalos e as campainhas das mulas. Um brilhante cortejo a cavalo atravancava a rua e acotovelava-se para penetrar no pátio do palácio. Giuliano e os seus amigos regressavam de uma festa no campo e enchiam a via Larga com um espantoso fresco colorido. Os fatos eram rosa, brancos, coral, verde-pálido ou amarelo-solar e era como se o vento, passando por todos os jardins de Florença, tivesse arrebatado as pétalas das flores para as depositar no coração da cidade. As montadas estavam arreadas de vermelho ou de azul debruado a ouro; as jovens traziam todas grandes ramos de lilases brancos, cujo perfume sensual as envolvia com uma nova sedução. Todos os rostos tinham a frescura da Primavera, todos os rostos sorriam em redor de Giuliano e de Simonetta, luminosa e diáfana como habitualmente, que não olhavam senão um para o outro... As flautas e as violas só pareciam tocar para eles...