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Demétrios, que descia a escadaria, abraçou com o olhar o grupo turbulento e notou a ausência de Chiara Albizzi, o que não era nada de espantoso, pois a jovem estivera no palácio durante a tarde, mas notou, pelo contrário, a presença de Luca Tornabuoni. Soberbo numa túnica curta amarela bordada a prata, os caracóis negros dos cabelos brilhando à luz do Sol poente, o jovem assediava visivelmente com atenções e sorrisos uma rapariga loira de olhos azuis, que ria enquanto lhe passeava sob o nariz a haste perfumada de um ramo de lilases... Em seguida, todos desceram dos cavalos e o grego reparou de novo que, ao ajudar a companheira, Luca a manteve apertada contra si mais tempo do que o necessário...

Obedecendo a um impulso, Demétrios aproximou-se dos dois jovens e, dirigindo-se à adolescente:

Não deixes que esse rapaz te roube o coração, donzela, porque ele é a coisa mais inconstante que existe neste mundo!

O jovem Tornabuoni ficou rubro de cólera:

Os privilégios que o meu primo Lourenço te concede não te dão o direito de me insultares.

Insultei-te ao dizer uma simples verdade? Há uma semana amavas outra, mas a tua chama não resistiu uma hora, uma hora sequer, ao vento da infelicidade... E dizes tu que és um homem... Toma cuidado para que o destino não te atinja um dia e vejas os teus amigos afastarem-se de ti!

De púrpura, Luca, sob o olhar cintilante do médico, tornou-se lívido:

Que queres dizer? És algum feiticeiro? Tens o poder de ler o futuro?

Talvez... mas não tem importância. Tu também não tens importância. Vive a tua vida fútil, meu rapaz, não foste feito para outra coisa! De qualquer maneira acrescentou ele com um sorriso sardónico ela não te amava.

E girando nos calcanhares foi buscar o seu cavalo, que estava preso a um dos grossos anéis de ferro que pendiam, para o efeito, das paredes do palácio. Sentia uma alegria cruel por ter apagado a daquele casal despreocupado. A sua felicidade tivera nele o efeito de mais uma injúria dirigida àquela que, despojada de tudo, nem sequer tinha destino e esperava, lá em cima, que uma multidão imbecil quisesse esquecê-la. Era, da sua parte, uma maneira como outra qualquer de lhe prestar homenagem.

Também não se sentia nada satisfeito com as reacções de Lourenço, porque tinha a impressão que a letra dos banqueiros de Augsbourg chegara mesmo a propósito, para justificar a tomada de controlo de uma fortuna que pertencia a Fiora e a mais ninguém. Sob a tortura, Marino Betti teria confessado o seu crime e, sem dúvida, denunciado Hieronyma, mas Lourenço nem sequer queria mandá-lo prender com receio da reacção da Senhoria e da de um povo cujo carácter versátil e cruel ele bem conhecia. Quem poderia dizer se, naquele receio, não estava a íntima satisfação de poder controlar, doravante, os bens que, de outra maneira, lhe seriam sempre estranhos? Demétrios não tinha nenhuma dúvida que o Magnífico tinha medo daquela multidão que agora o aplaudia e lisonjeava. O médico sabia que, quando caminhava pelas ruas, Lourenço vestia uma cota de malha sob os seus trajes de veludo, ou de tecido fino. Ele era o primeiro de uma cidade que se queria livre e não o tirano de uma cidadela submetida pela força, se bem que tivesse o devido instinto...

Deixando as rédeas descansar em cima do pescoço do seu cavalo, Demétrios subiu a via Larga a passo. Era a hora a que as lojas fechavam as portas e a hora a que começavam as conversas. Pequenos grupos formavam-se à entrada das portas, enquanto outros os homens sobretudo se dirigiam isolados, ou em companhia, para as praças, onde estavam certos de encontrar os comensais habituais. Demétrios afastou com as costas da mão uma mosca precoce que anunciava um Verão quente, mas terminou o gesto numa saudação: da porta da sua loja, o livreiro Bisticci fez-lhe sinal. O médico aproximou-se:

Tens novidades para mim?

Tenho... e excelentes! Encontrei um jovem árabe que tem uma caligrafia soberba. O tratado de Ibn Sina já está a ser copiado. Tê-lo-ás dentro de um mês ou dois!

Demétrios mostrou uma alegria que estava longe de sentir. Esperara tanto por aquele livro... mas, dentro de dois meses, onde estaria? Um daqueles pressentimentos, que por vezes lhe fazia as vezes de segunda visão, dizia-lhe que por essa ocasião o castelo na encosta da colina estaria vazio e que ele estaria longe. Mas onde?... Aliás, pouco lhe importava, porque desde a juventude que a sua vida era uma longa vagabundagem em busca da sabedoria, mas a entrada de Fiora na sua existência permitia-lhe poder aceder, finalmente, a um sonho: ver um dia a seus pés o cadáver do último daqueles duques da Borgonha, daqueles Grandes Duques do Ocidente, que enchiam o mundo com o seu esplendor, o seu poder e o seu orgulho, mas cuja presunção matara o seu jovem irmão Teodósio, tão certo como o carrasco turco que o empalara! O seu irmãozinho! O único ser que jamais amara!

Separavam-nos 15 anos e, depois da morte dos seus pais, tinham ficado sós no grande palácio de Phanar, em Bizâncio, onde Teodósio nascera. Demétrios, esse, vira a luz do dia na ilha de Cós, pátria de Hipocrates, onde o seu pai tinha umas propriedades. A«sua vocação nascera lá.

Quando em 1453 o sultão turco Maomé II cercou as muralhas de Bizâncio, Demétrios tinha 35 anos e Teodósio 20. Um já era um médico sábio, enquanto o outro pertencia à juventude dourada, como convinha ao descendente de uma rica e antiga família, que tinha, um dia, acedido ao trono e o irmão mais velho sorria com indulgência face às loucuras do mais jovem. E depois, fora preciso combater. Ambos o tinham feito, cada um no seu lugar: Teodósio com o elmo prateado dos guardas do imperador Constantino, pelo qual tinha uma verdadeira devoção e Demétrios no hospital que tinha improvisado sob o seu próprio tecto para as dezenas de feridos que ali afluíam todos os dias...

A notícia da investida dos Turcos naquela triste manhã de 23 de Abril, em que os Bizantinos, espantados, se aperceberam que as galeras do inimigo navegavam no Corno de Ouro depois de terem transposto a colina, chegou como uma tempestade ao palácio-hospital. Demétrios foi juntar-se aos últimos combatentes. No dia 29 de Maio, perto da porta de São Romão, viu cair o Basileu, que só conservara como sinais exteriores do império as suas campagia púrpuras, os borzeguins ornamentados com a águia bicéfala. Conseguiu arrastar Teodósio, que queria morrer ali.

À custa de mil dificuldades, os dois Lascaris conseguiram fugir da cidade em chamas, encontraram um barco e chegaram a Veneza, onde a notícia da catástrofe pesava como um sudário. Todo o Ocidente cristão estava indignado, reclamava a guerra santa contra o sultão e com

1 O Imperador

mais força ainda, talvez, do que os outros príncipes, o duque Filipe da Borgonha. Teodósio, que só sonhava com a vingança, arrastara o seu irmão mais velho até à corte da Borgonha, onde foram bem recebidos. Os fugitivos de Bizâncio foram festejados e disputados, sobretudo o mais novo, porque Demétrios, com a sua clarividência, pressentiu que toda aquela agitação era artificial. Mas Teodósio não.

Ainda mais quando foi dado assistir aos dois irmãos, em Lille, à mais fabulosa festa de todos os tempos, aquela que a História recordaria sob o nome de «o juramento do Faisão»...

Tratava-se de um antigo costume: quando senhores e cavaleiros se empenhavam num combate maior e queriam conferir ao seu juramento uma importância particular, gostavam de o fazer sobre uma ave nobre, como um faisão, por exemplo. No decurso de um festim solene a ave era trazida assada e enfeitada com todas as suas penas. Um cavaleiro trinchava-a de maneira a que cada um dos conjurados recebesse um pedaço, estabelecendo assim uma aliança misteriosa entre companheiros de armas e relembrando a Última Ceia e a Távola Redonda.