O dia 17 de Junho de 1454 viu essa festa do Faisão, durante a qual se usaram os trajes, decorações e maquinarias mais magníficos e singulares. Sobre uma soberba ave com um colar de ouro e pedrarias, o duque Filipe, o seu filho Carlos, os cavaleiros do Tosão de Ouro e os mais altos dignitários presentes juraram partir em cruzada contra Maomé II e reconquistar Bizâncio...
Desde logo ficou tudo dito para Teodósio, que chorou de alegria e que, encorajado pelos Borgonheses, quis partir de imediato, a fim de anunciar a boa nova ao que restava do povo dos seus antepassados e prepará-los para a luta. Demétrios, atormentado pelos piores pressentimentos, partiu com ele. Durante meses percorreram as terras e as ilhas gregas, anunciando a vinda da caizada como um novo Evangelho, mas esta não havia meio de vir... Teodósio recusava a evidência: o juramento do Faisão não passara de uma ocasião para grandes divertimentos. Nem o duque Filipe, nem o seu filho, tinham vontade de abandonar o que era quase um reino para irem combater um inimigo longínquo, apesar de o considerarem o Anticristo. Tinham-se limitado a dar prazer a si próprios, ressuscitando as antigas tradições cavaleirescas, às quais tanto um como outro se proclamavam muito ligados. Nada mais!
Teodósio não acreditava. Ele tinha fé num juramento solene, o qual não se podia quebrar sem desonra. Instalado em Atenas com o seu irmão, esperava a chegada dos cruzados, pregando a esperança e a resistência.
Infelizmente não foi a brilhante armada da cruzada que ele viu chegar, mas sim ainda e sempre o Turco invencível. Em 1456, Atenas caía por sua vez e Teodósio era feito prisioneiro. Demétrios, ocupado a tratar dos feridos num outro ponto da cidade, não estava perto dele, mas, vira-o sofrer atrozmente, porque, prisioneiro, continuara a anunciar que o Grande Duque do Ocidente viria em breve castigar os inimigos de Cristo. Demétrios quase enlouquecera. Chegada a noite, apunhalara Teodósio para lhe abreviar o sofrimento e fugira. Fora a partir desse dia que deixara de acreditar em Deus e que jurara vingar-se daqueles por culpa de quem o seu jovem irmão tivera um fim abominável. Mas a Borgonha ficava longe, era rica e poderosa, os seus príncipes eram bem defendidos e ele só tinha o alforge onde guardava os instrumentos de que podia necessitar.
Então, durante anos, Demétrios esforçara-se por adquirir cada vez mais saber, porque esperava tirar dele o poder que lhe faltava. Procurara-o por toda a parte: no Egipto e nas areias da Arábia, em África e no último reino mouro de Espanha, junto dos judeus de Toledo onde fora iniciado na kabala, na célebre universidade de Montpellier onde permanecia a recordação dos grandes Arnauld de Villeneuve e Guy de Chauliac; procurara-o, também, nos antros negros dos feiticeiros e dos mágicos. Estudara o curso dos astros e a sua relação com o destino dos homens. Desenvolvera, através do jejum muitas vezes obrigatório os seus dons de vidência e aprendera, de um médico judeu de Malta, os estranhos poderes de um olhar quando unido a uma vontade inflexível. Pensando, então, que detinha enfim esse poder tão desejado, embarcara com Esteban, que se ligara a ele em Castela, para Marselha. Uma tempestade tinha-os atirado aos dois para o fundo do golfo de Génova, mais despojados do que nunca e doentes. Um mercador recolhera-os, reconfortara-os e dissera a Demétrios que um primo seu, Constantino Lascaris, célebre gramático, estava ligado à corte de Milão. Ele poderia, certamente, ajudar um médico de tanto valor.
O primo Constantino mostrara-se amável, mas não desejava ver aumentar a família Lascaris em Milão e obtivera do seu duque uma carta de recomendação que ele próprio escrevera, aliás para, Lourenço de Médícis, sempre ávido de homens cultos vindos das terras gregas.
Demétrios estava cansado. Desejava um pouco de repouso. Encontrara-o em Florença, onde o Magnífico o tratara como amigo e instalara acima dos seus desejos. No seu castelo de Fiesole, o vagabundo encontrara sossego. Trabalhava numa obra sobre a circulação sanguínea, na qual refutava vigorosamente as teorias de Galileu, o todo-poderoso, o menino querido da Igreja, que elevara as suas obras ao estatuto de acto-de-fé. Quem não estava de acordo com as ideias do defunto médico de Pergamo arriscava-se a ser acusado de heresia. Mas naquela Florença impregnada de humanismo, Demétrios não tinha razões para temer a ira da Igreja. Dedicava-se com ardor à sua tarefa de sábio e, naquela paixão que o enchia, o gosto da vingança esbateu-se um pouco. E depois, no mesmo dia, encontrara Fiora e aquele enviado do Temerário, cuja presença acordara o velho ódio. Espiara este último e vira desenrolar-se o breve romance com a jovem florentina, que lhe inspirara algumas visões.
A revelação do seu nascimento só confirmou o que lhe dissera o horóscopo da jovem, que comparou, empurrado por uma das suas intuições, ao de Carlos da Borgonha. Compreendeu então que, com ela, tinha a arma que não esperara encontrar. E dedicara-se à tarefa de a salvar custasse o que custasse...
O grito intenso de um corvelo, afastando-se de uma moita, tirou Demétrios do seu sonho amargo. O médico sacudiu-se, viu que estava na estrada e que as portas da cidade já tinham ficado há muito para trás. A noite anunciava-se nos últimos reflexos malva e laranja do sol. O médico apressou um pouco o passo da montada. Tinha pressa de chegar a casa, porque não repousava há mais de 36 horas.
Encontrou Fiora sob a ramada do terraço. A jovem usava uma túnica de seda púrpura pertencente a Samia, e Demétrios concluiu que ia ser preciso arranjar-lhe alguma roupa, constatando, apesar de tudo, que aquele traje simples ia às mil maravilhas com a sua beleza pura. Com os cabelos atados simplesmente com uma fita, parecia uma jovem grega.
Esteban estava sentado perto dela e parecia encantado. Era verdade que a jovem falava com ele em castelhano e que o antigo explorador era sensível a tudo o que lhe fazia lembrar um país que amava, a despeito de tudo o que o fizera sofrer. Aproximando-se, Demétrios compreendeu, pelas palavras trocadas e pelas lágrimas que brilhavam nos olhos de Fiora, que Esteban lhe dava conta da sua missão em casa de Pippa e que essa missão resultara num fracasso.
Não a trouxeste? perguntou ele. O Mulherão recuou? No entanto, disse-te o que tinhas a fazer.
O Mulherão não recusou nada. Até me teria dado a alma se lha tivesse pedido, de tal maneira queria o que eu lhe oferecia, mas a rapariga tártara já não está em casa dela. O cliente com quem ela passou a noite apaixonou-se, ao ponto de a querer comprar a qualquer preço. Como oferecesse uma bela soma, Pippa deixou-se convencer. Ainda por cima porque não tinha de ficar com uma testemunha tão comprometedora...
Ela falou num estrangeiro disse Fiora. Disse, ao menos, um nome, ou para onde ia?
Para Roma, mas não sabe o nome dele. Sabe apenas que é um médico, a quem chamava serSebastiano... Também disse... que a rapariga parecia feliz por partir com aquele homem, que era jovem... e não era feio!
Fiora não disse mais nada. Sentia-se desorientada... Teria Khatoun encontrado a felicidade numa casa como a de Pippa? Ou então, acreditando-se abandonada por Fiora, teria escolhido deliberadamente a primeira tábua de salvação que se lhe oferecia?
De qualquer maneira suspirou Demétrios, que tinha seguido o curso dos seus pensamentos é-nos impossível lançarmo-nos em sua perseguição. Além disso, se ela estava contente, por que não dar-lhe uma hipótese de ser feliz?
Podemos confiar numa mulher como Pippa? perguntou Fiora.
Por que não? Ela não tinha razão para mentir, a partir do momento em que lhe ofereciam ouro. E agora vamos jantar! Eu estou muito... cansado.
Demasiado cansado para contar a Fiora, nessa noite, o que se passara entre Marino Betti e Esteban. Aquilo podia esperar... Há muito tempo que não se sentia tão cansado... Pela primeira vez pensou que já não era novo...