Não. O laço de sangue parece-me mais sólido do que uma folha de papel. Fará de ti minha irmã, uma irmã que eu saberei tornar terrível, juro-te.
Os olhos negros e os olhos cinzentos cruzaram-se como duas mãos que se apertam.
Aceito! disse Fiora.
Demétrios tirou o estilete preso à sua cintura numa bainha de couro.
Dá-me a tua mão esquerda!
A jovem obedeceu. Com um golpe leve, o médico fez-lhe, no punho, um pequeno corte, de onde o sangue brotou. Em seguida fez o mesmo no seu braço direito e juntou os dois golpes.
Os nossos sangues estão misturados disse ele. Doravante estamos unidos, tanto no bem, como no mal!
Procurando um frasco, fez correr umas gotas do seu conteúdo sobre o punho de Fiora. O sangue estancou. O médico fez o mesmo a si próprio. Fiora olhou, fascinada:
Ensinas-me alguns desses segredos? perguntou ela.
Ensinar-te-ei muitas coisas. A arte dos filtros que subjugam e dos venenos que matam, a arte de ler um carácter nos traços de um rosto, a arte de...
Espera! Por que os venenos?
Podem ser muito úteis...
A mim, não! Conhecer as drogas que provocam o sono, sim, mas o veneno, não. Prefiro outras armas: as dos homens, por exemplo. Eu sou uma boa amazona, creio, mas gostaria de saber manejar a espada, servir-me de um punhal...
Pela primeira vez Fiora ouviu Demétrios rir:
Isso é mais do domínio de Esteban. Ele é de uma extrema habilidade e terá muito prazer em te ensinar: creio que o seduziste...
Em virtude do adágio que diz que mal se fala do burro aparecem logo as orelhas, a personagem em questão entrou bruscamente no gabinete...
Mestre! Vêm aí dois monges!
Monges? De que espécie?
Pelos hábitos são irmãos pregadores, como os lá de cima explicou Esteban com um movimento de cabeça na direcção aproximada do convento onde Fiora se tinha casado...
^Devem ter-se enganado no caminho. Vai ter com eles e indica-lhes o caminho certo! De qualquer maneira, vou ver.
Demétrios deixou a sala nos calcanhares do seu servidor e Fiora seguiu-os até à sala de entrada. Pela porta aberta a jovem apercebeu, à luz vermelha do Sol poente e no meio da alameda de ciprestes dois monges que, de capucho sobre o nariz, avançavam no passo vagaroso das suas mulas. Um dos monges era magro, mas o outro, o que cavalgava à frente, devia ser bastante gordo, porque o seu hábito era mais cheio do que o do seu companheiro. Fiora viu Esteban correr ao seu encontro, fazendo grandes gestos para explicar aos viajantes que iam pelo caminho errado, mas os monges recusaram retroceder. Após terem trocado algumas palavras, toda a gente se pôs em marcha na direcção da casa.
Esconde-te! ordenou Demétrios à jovem. Vou ver o que nos querem.
Contrariada, Fiora retirou-se para o pátio interior, mas de maneira a poder ver o que se passava diante da casa. Demétrios abordou os dois cavaleiros que, ao vê-lo, tiraram os capuchos... Com um grito de alegria, Fiora, esquecendo toda a prudência, lançou-se na sua direcção: o monge gordo era Colomba e o outro era Léonarde...
Rindo e chorando ao mesmo tempo, a jovem caiu nos braços da sua velha governanta, que saltara da montada rapidamente para a receber. As duas mulheres abraçaram-se na soleira da porta sem parecerem aperceber-se dos esforços que Demétrios fazia para as empurrar para o interior...
Vós? balbuciou Fiora, reencontrando automaticamente a língua francesa vós, minha Léonarde? Não esperava voltar a ver-vos... Temia... Pensava... Oh! meu Deus! Digo cada disparate! disse ela afastando-se para melhor olhar para aquela que regressava. Mas, por que milagre?
Não é milagre nenhum, donna Fiora ceceou Colomba são apenas precauções! Na manhã seguinte à tua prisão em Santa Lúcia pobrezinha! Como está mal servida! Tenho de lhe queimar umas velas!
que é que eu estava a dizer? Ah sim!... Na manhã seguinte, portanto, fomos a tua casa com donna Chiara e levámos donna Léonarde connosco. Sabíamos que lhe aconteceria qualquer coisa se ficasse sozinha no palácio. Os criados estavam todos mortos de medo... e, aliás, tínhamos razão. Quando penso no que aconteceu! Aqueles soldados abomináveis, aquela bela casa toda pilhada! Realmente, há gente que não teme Deus nem o diabo!
Quando Colomba se lançava era tão difícil fazê-la parar como reter a corrente tumultuosa de um rio. Mas Fiora, desta vez, escutava-a com encanto, à espreita do primeiro silêncio que lhe permitisse exprimir a sua gratidão. Segurava Léonarde por um braço, como se temesse vê-la desaparecer de repente. A velha solteirona, entretanto, olhava para ela com estupor:
Mas, como estais vestida, meu anjo? perguntou ela por fim.
Essa coisa vermelha... quando estais de luto?
Esta túnica pertence a Samia, a criada de Demétrios. Não tenho mais nada para vestir. O meu vestido preto ficou no convento...
Donna Chiara pensou nisso continuou Colomba. Trazemos connosco uma mula carregada de vestidos para ti e para Léonarda e outras pequenas coisas que conseguimos arranjar. Poveretta! Tanta coisa má ao mesmo tempo! Nem sequer te deixaram chorar em paz... E agora ainda te vão fazer chorar mais...
Algo gelado se colou à alegria de Fiora sem a conseguir apagar por completo, mas fazendo renascer aquela angústia que fora sua companheira durante todos aqueles dias passados. O seu olhar procurou o de Demétrios, como para lhe pedir socorro. Entretanto, Léonarde repreendia a sua amiga:
Era preciso falar já disso? Acabamos de chegar...
E precisais de repouso e comida completou o médico. Vinde à cozinha! Aproxima-se a hora da refeição e Samia acrescentará o que for preciso. Esteban vai pôr as vossas mulas na estrebaria, porque creio que não regressareis esta noite, pois não, donna Colomba? Não seria prudente e as portas da cidade fechar-se-ão dentro de poucos instantes...
Aquela torrente de palavras, tão pouco usual em Demétrios, conseguiu reduzir ao silêncio a excelente mulher. Esta resmungou que donna Chiara só a esperava no dia seguinte e que ficaria contente por comer qualquer coisa.
O médico empurrou toda a gente para a cozinha: Samia, prevenida por Esteban, meteu mãos à obra. Pôs duas galinhas no espeto e começou a cortar espessas fatias de presunto que retirou de uma viga. Colomba olhou para aqueles preparativos todos com satisfação e instalou-se junto do fogo, propondo virar o espeto se quisessem dar-lhe um dedo de qualquer coisa «reconfortante», porque o passo da sua mula fizera-lhe mal ao estômago. Demétrios apressou-se a satisfazê-la indo desenganchar um garrafão, que deixou, aliás, em cima da mesa depois de a sua gorda visitante ter engolido de um trago meia taça de grappa... Colocou, até, outras taças em cima da mesa, propondo a Léonarde que provasse a reconfortante bebida. A pobre mulher, com efeito, tinha a cara desfeita e os olhos avermelhados devido a lágrimas recentes, o que, na alegria do reencontro, ninguém tinha ainda reparado, mas recusou:
Talvez daqui a pouco. O que tenho a dizer é tão terrível! Fiora também pode vir a precisar...
Mas, enfim interrogou a jovem que se passou?
Um horror, que não tem nome em língua nenhuma, meu cordeirinho. Nunca pensei que houvesse gente capaz de uma tal infâmia, de um sacrilégio tão abominável...
Em meia dúzia de frases rápidas que ela pareceu escarrar com medo que lhe envenenassem a boca, contou a história. Nessa manhã, ao entrar na igreja de Orsanmichele para preparar o altar para a primeira missa, o sacristão descobrira um espectáculo que o atirara para a rua aos gritos: a tumba ainda fresca de Francesco Beltrami fora aberta. Mãos criminosas tinham tirado o corpo, tinham-no cortado em pedaços e tinham-no abandonado ali, sem sequer tentarem dissimular aquela obra abominável... Branca como a cal e os olhos esbugalhados de pavor, Fiora levantara-se: