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Com efeito, desde há uns instantes que uns eflúvios insípidos e enjoativos expulsavam o perfume fresco dos campos. Esteban afastou-se contrariado e depois estendeu o braço para o grande pinheiro que dava sombra à entrada da propriedade. De um dos seus ramos pendia um fruto abomináveclass="underline" o corpo esventrado de Marino Betti. O odor era o do sangue e o da morte.

Ao invés do que Esteban temera, Fiora olhou sem fraquejar o horrível cadáver. O seu carrasco abrira-o do externo ao baixo ventre e de uma anca à outra. As entranhas pendiam. Além disso, tinham-lhe cortado o punho direito... Demétrios tirou da algibeira uma pederneira e uma espécie de pavio, raspou aquela para acender este e ordenou a Esteban:

Leva-a daqui! Já viu o suficiente. Eu quero examinar umas coisas.. Contrariamente ao que os dois homens esperavam, Fiora deixou-se levar sem resistência. Perante aquele acto de justiça bárbara, a jovem experimentara uma manifestação repentina de alegria selvagem, se bem que incompleta: a mão que assassinara o seu pai fora cortada, mas a cabeça ficara. Todavia, sentira uma espécie de alívio bem natural. Nunca tendo morto ninguém até à data, desconfiava de si própria e temera, durante o caminho todo, fraquejar no momento de ferir. Graças a Deus, Marino encontrara o seu castigo sem que ela tivesse de sujar as mãos, mas talvez a Providência não fizesse sempre o seu trabalho! No futuro, não poderia ceder à sua natural sensibilidade feminina.

Então? perguntou ela quando Demétrios se lhe juntou limpando os dedos a um lenço. Que descobriste?

O homem foi torturado disse ele. Queimaram-lhe os pés. E levaram-lhe o coração.

Como não tenho nada a ver com isto, pergunto-me quem o poderá ter feito! disse Esteban. Dir-se-ia trabalho de talhante, ou de cirurgião, de tal modo os cortes são precisos...

Ou de um homem qualquer habituado a manejar armas! cortou Fiora. Para que é preciso procurar tantos pormenores? Fez-se justiça Divina, é tudo!

Tu não és curiosa observou Demétrios. Eu inclinar-me-ia mais para a justiça de Lourenço de Médicis. Uma justiça discreta mas à sua maneira, quando não pode fazer as coisas de outro modo. O seu capitão, Savaglio, não tem hesitações nem piedade quando se trata de um serviço para o seu senhor. E, como muito bem disseste, Fiora, ele maneja as armas com virtuosismo. Sim, pode muito bem ter sido ele... se não fosse o coração arrancado!

Ele não arrancou o do meu pai? É justo, parece-me?

Talvez... mas, neste caso, não havia qualquer razão para o levar e eu não vi vestígios dele. É verdade que Marino deve ter sido morto a noite passada e que os cães devem ter passado por aqui... Ninguém nos poderá informar. Não há vivalma nesta quinta. O terror fez fugir toda a gente...

O médico pensava em voz alta, sem se preocupar com os companheiros:

Sim... é isso, sem dúvida prosseguiu ele. A menos que Savaglio, se foi ele, tenha querido levar ao seu senhor uma prova da execução! Também é possível, claro... no entanto, não acredito.

Porquê? perguntou Fiora sem paciência para aquelas cogitações sem sentido para ela...

Porque hoje é dia 28 de Abril...

E depois?

Depois de amanhã será dia 30.

É evidente. E depois?

É o seguinte: a noite entre o último dia de Abril e o primeiro dia de Maio é uma grande noite para os feiticeiros de todos os países. Na Alemanha, nas montanhas do Harz onde se realiza a grande reunião, chamam-lhe Walpurgisnacht, a noite de Walpurgis. Depois de amanhã, os feiticeiros de Norcia encontrar-se-ão todos... assim como os de Fontelucente!

Continuo a não ver a relação entre isso e o que acabamos de ver! Sem responder, Demétrios dirigiu-se ao seu cavalo, fê-lo virar-se

e içou-se para a sela. Depois, esperou que os outros fizessem o mesmo.

Sempre fui curioso por natureza disse ele tranquilamente. E qualquer coisa me diz que será interessante saber o que vai acontecer nessa noite...

A madrugada não vinha longe quando regressaram ao castelo. Léonarde, que partilhava a cama com Colomba e não pudera conciliar o sono, esperava debruçada da janela. Mas apenas os seus olhos interrogaram a jovem quando esta entrou no quarto tirando o capuz à moda francesa que lhe escondia os cabelos e atirando-o para cima de uma arca. Desde que a sua «pequenina» a deixara, anunciando a sua intenção de matar Marino Betti, a pobre mulher deixara de viver... Fiora teve para ela um meio sorriso:

Quando lá chegámos ele já estava morto disse ela. Eu não fui perdida nem achada...

Deus seja louvado! Eu não suportava a ideia de que vós, meu anjo, pudésseis...

Léonarde! Léonarde! Peço-vos... tendes de compreender que já nada é como era e nunca mais será. Agora já sabeis o que aconteceu depois de nos afastarmos uma da outra. Eu já não sou a Fiora inocente que vós embalastes e vistes crescer. Agora sou outra... outra que, a bem dizer, ainda não conheço muito bem e que talvez um dia destes vos cause um desgosto.

Nunca! Nunca, façais o que fizerdes! Vós sois a pequenina do meu coração e nada nem ninguém... nem sequer vós mesma, poderá mudar seja o que for. Pensai apenas que a vingança, se bem que tenha sempre alguma coisa de exaltante, deixa sempre um gosto amargo e Deus..

Não me faleis de Deus! Não me faleis d’Ele nunca mais! exclamou Fiora. Não cessa de deixar cair em cima de mim cada vez mais golpes e sem eu ter cometido qualquer mal. Trata-me como uma inimiga, uma rejeitada! Que crimes são estes, que abominações são estas, que não cessam de me cair em cima? A vontade de Deus? Pensava que Ele era bom e misericordioso...

Ele próprio não aceitou o sofrimento ao permitir que o seu filho suportasse o suplício da cruz? perguntou Léonarde com uma grande tristeza.

O sofrimento de um deus é o mesmo de um homem, ou de uma mulher? Só podemos chegar a Ele pela dor, a Ele que é tão grande? Não, Léonarde: peço-vos, deixai-me com a tarefa a que me propus e não me faleis mais de Deus!

Se assim o quereis! Mas não me impedireis de Lhe falar de vós... Dois dias depois, quando Demétrios, depois do jantar, se preparou para ir ter com os feiticeiros, Fiora declarou-lhe que tencionava acompanhá-lo. Ele lançou-lhe um olhar oblíquo:

Não estou certo de que seja um espectáculo para ti. Passam-se lá coisas desagradáveis e, além disso, é perigoso.

Não te preocupes com os meus olhos! E deixa-te de dúvidas. Quando falaste dessa reunião sabias muito bem que eu iria contigo.

Sim... sim, sabia, mas estou arrependido de te ter falado nela. Não seria melhor parares por um momento e não ires até ao fundo desta descida aos Infernos que começaste? Gostaria que tu própria te poupasses...

O primeiro passo é que custa. Pelo menos, verei se Dante tem razão no seu inferno, ao mostrar os feiticeiros com a cabeça virada ao contrário, de maneira que as lágrimas lhes caem pelas costas abaixo...

Fontelucente gozava de uma detestável reputação. Era, em notoriedade e terror público, o mais famoso covil de feiticeiros de toda a Toscânia. Tinha alinhamentos rochosos, uma gruta e cabanas onde viviam criaturas que de humano só tinham a aparência exterior. Na sua maior parte eram infelizes reduzidos pela miséria, pela doença, ou pela loucura, a uma condição quase larvar e que tinham tirado da sua nudez e da natureza envolvente receitas bizarras. Perseguidos e acossados por toda a parte, tinham-se afastado do céu e de uma misericórdia em que já não acreditavam, para tentarem manter com as forças infernais um comércio que os vingava e lhes permitia semear um medo que os protegia. Tinham-no conseguido na perfeição e o medo que inspiravam com os seus encantamentos e magia era tal que o deserto se fizera em redor daquele local risonho e fértil, mas que diziam maldito. No entanto, uma nascente pura, uma nascente esplendorosa brotava naquele local, sustentando uma vegetação espessa naquele lugar rejeitado, de onde as pessoas se afastavam com medo de sortilégios. Apesar disso, em certas noites escuras, figuras mascaradas e envoltas em mantos sombrios deslizavam até Fontelucente. Uma rapariga procurando esconder o fruto de amores proibidos, uma mulher ciumenta encarniçada contra a sua rival, um rapaz apaixonado desdenhado pela sua bela e até uma dama nobre, reduzida pelas suas paixões a procurar um socorro infame, pago com resgate de reis. Esses conseguiam do seu medo, do seu ódio ou do seu amor a coragem para irem ter com os feiticeiros, dos quais alguns eram mais ricos do que pareciam.