Demétrios desviou os olhos daquele olhar que implorava uma resposta e saiu da cozinha. Ouviram os seus passos na escadaria da torre, para o topo da qual ele gostava de se retirar para observar as estrelas e prestar atenção à sua linguagem. Mas naquele fim de noite, porque a alvorada iria em breve aparecer, o médico desviou o olhar do céu para olhar para a cidade adormecida. Sabia que Florença já não queria saber de Fiora Beltrami, mas não tinha coragem de lho dizer...
CAPÍTULO XI
«ANTES DE EU ALCANÇAR A MARGEM DESEJADA...»
O rumor, partido do rio onde os marinheiros se afadigavam, correu pelas ruas e praças, atingiu primeiro a milícia que tinham chamado de imediato, o Bargello e a Senhoria e depois o resto da cidade, como se fosse um tição lançado para uma meda de palha: um pescador tirara do Arno o corpo de Pietro Pazzi, apunhalado entre as duas espáduas...
Esteban, que tinha ido às compras ao Mercato Vecchio como sempre fazia três vezes por semana, ouviu-o enquanto comprava queijo, voltou a ouvi-lo na vendedeira de criação e ficou com as orelhas cheias quando chegou ao balcão do talhante, mas com variantes, porque a festa do «diz-se» estava lançada. Cada um pretendia saber mais do que o seu vizinho e as versões mais fantásticas começavam a circular...
Esteban não gostava de tagarelice. Em Castela tinha causado a morte da sua mãe, acusada por um vizinho de lhe ter envenenado a água do poço e de ter feito um feitiço ao seu filho. Apesar de ser uma boa cristã, a anciã fora parar à fogueira e o seu filho, desesperado, dera tudo o que tinha em dinheiro ao carrasco para que ele a estrangulasse antes de as chamas a atingirem. Em seguida matara o vizinho, o filho e lançara fogo à sua quinta. Demétrios Lascaris, que acabava de chegar ao país, levara-o consigo pouco antes de o prenderem, salvando-lhe assim a vida e ganhando para sempre a sua dedicação e reconhecimento...
Não, Esteban não gostava de bisbilhotices. Odiava-as quase tanto como os padres, que a meias com o alcaide da sua terra tinham condenado a sua mãe, porque o acusador era rico e ela pobre... A sua vida ao serviço do médico grego, filósofo, astrólogo e mágico convinha-lhe às mil maravilhas, porque, para além de pequenas tarefas domésticas quotidianas, tinha uma certa liberdade: nunca Demétrios lhe reprovara o seu gosto pelo vinho e pelas mulheres e ele amava ambas as coisas quase tanto como o combate, as armas e a guerra, que eram a sua vida desde os 12 anos de idade...
Decidido a obter informações tão claras quanto possível, o castelhano confiou a sua mula já carregada ao albergue da Croce di Malta onde o conheciam e dirigiu-se ao palácio da Senhoria e seu complemento, a loggia del Priori, onde era quase sempre certo encontrar três ou quatro notáveis a conversar. Aquilo permitiu-lhe ver chegar o velho Jacopo Pazzi, que ocupava então a sua casa florentina e que entrou de rompante, carregando como um touro furioso, no velho palácio. Saiu de lá um momento mais tarde escoltado pelo Bargello e por um esquadrão de guardas. Um arrepio percorreu, então a praça: o patriarca fora preso? Mas durou apenas um instante. A tropa dirigiu-se para a Ponte Vecchio. Esteban seguiu a pequena multidão que se formara instantaneamente, o que lhe permitiu assistir à prisão do Mulherão e do seu irmão. Pippa resistiu de tal modo que foram necessários cinco homens para a segurar. Levaram-na finalmente para a Stinche, a prisão da cidade, vociferando e berrando imprecações e injúrias, às quais os assistentes se apressaram a responder, porque, apesar de ignorarem o que se passava, os Florentinos não perdiam uma ocasião para se fazerem ouvir e manifestar. Quando alguém era levado para a prisão, ouvia-se sempre gritar «À morte!» ao acaso, com boas hipóteses de errar apenas uma em duas vezes.
Bastante mais frio, Esteban achou que já tinha visto o suficiente e que já era tempo de ir prevenir o seu patrão do que se passava, tanto mais que o cortejo de Pippa, ao voltar a transpor a ponte, tinha mais uma unidade: frei Inácio, que se juntara ao velho Pazzi, regulando o seu passo pelo do velho e falando-lhe com loquacidade. Ora, o castelhano detestara instintivamente o seu compatriota, que achava falso, cruel e pérfido, e não se enganava muito. A aproximação entre aqueles dois homens pareceu-lhe extremamente inquietante...
Servindo-se dos cotovelos para afastar a multidão, o castelhano foi buscar a sua mula, ao carregamento da qual acrescentou uma pequena bilha de azeite, foi beber a sua taça de vinho habitual para não despertar a curiosidade e deixou a cidade rapidamente, não sem reparar no ajuntamento que já se formava defronte do palácio dos Médicis fazendo um barulho terrível, porque toda a gente falava ao mesmo tempo e com grandes gestos.
Ao regressar a Fiesole encontrou Demétrios no seu gabinete, ocupado a embalar cuidadosamente alguns livros em pedaços de tecido e a guardá-los numa pequena arca pousada em cima de um escabelo. A um canto da mesa, sobre uma pele de gamo, estavam alinhados, brilhantes de uma limpeza recente e numa ordem perfeita, os instrumentos de cirurgia: lancetas, escalpelos, trépanos, agulhas direitas ou curvas, pinças e outros, que tinham seguido o médico desde Bizâncio e que ele tinha conseguido conservar apesar das vicissitudes das suas longas peregrinações. O velho saco de couro, que os continha habitualmente, estava pousado ao lado e aberto.
Esteban abraçou com um olhar rápido aqueles preparativos:
Mestre disse ele vais partir?
É preciso estar sempre pronto para partir, meu rapaz. Mas, tu, diz-me porque regressaste mais depressa do que habitualmente? Vejo pela tua cara que tens qualquer coisa para me dizer.
É verdade e também é verdade que estou preocupado.
O castelhano não era homem de grandes narrativas. Em meia dúzia de frases contou o que tinha visto, espreitando no rosto do grego o efeito das suas palavras. Mas Demétrios, que acabara de encher a arca, contentou-se em fechá-la e dizer:
Ah!
Em seguida, aproximando-se dos seus instrumentos, enxugou-os cuidadosamente um a seguir ao outro e depois enrolou-os na pele de gamo, que introduziu no saco. Esteban observou-o em silêncio, percebendo que o médico reflectia. Ao cabo de um momento, Demétrios ergueu para ele os olhos:
Vai chamar donna Fiora! Ela está no jardim a dar de comer aos pombos...
Fiora entrou um momento mais tarde, uma silhueta delgada de negro e branco, asseada e convencional. A evadida do convento num hábito branco e sandálias de corda, a jovem grega de túnica púrpura e o pajem de gibão verde tinham desaparecido para dar lugar àquela jovem de luto, de cabelos sensatamente entrançados e Demétrios surpreendeu-se a si próprio ao lamentá-lo, mas os grandes olhos cinzentos continuavam os mesmos e o grego sabia que eles podiam reflectir todas as tempestades do céu e que aquela aparência elegante e serena escondia as chamas de um coração ardente e de um carácter orgulhoso e corajoso. Como se viesse em visita, Léonarde acompanhara-a e mantinha-se perto da porta com as mãos cruzadas no regaço, como convinha à acompanhante de uma dama nobre. Demétrios teve a tentação de lhe pedir para os deixar a sós, mas pensou que, agindo assim, aproximava-se das convenções sociais que tanto o irritavam. Por outro lado, Léonarde já tinha embarcado no mesmo barco batido pelos ventos e incessantemente ameaçado da sua aluna. Era inútil esconder-lhe fosse o que fosse, tanto mais que seria posta ao corrente logo depois, i O castelhano entrara atrás dela... Esteban acaba de regressar com notícias que eu acho inquietantes disse Demétrios. Deves ouvi-las. Ela ouviu-as e não pareceu ficar muito perturbada. Apenas a menção ao monge espanhol a fez franzir as sobrancelhas.