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Juliette Benzoni

Fiora e Luís XI, Rei de França

Primeira parte

A PEDRA ARRANCADA

CAPÍTULO I

UMA PRIMAVERA PODRE

Florença nunca vira uma coisa daquelas. Desde o monstruoso Domingo de Páscoa 16 de Abril de 1478 em que o Sol iluminara impiedosamente o sacrilégio e os massacres de que a cidade fora testemunha e depois intérprete forçada, que o céu, envolto em nuvens negras e baixas e cobrindo o horizonte de uma ponta à outra, não parecia capaz de oferecer uma réstia, que fosse, de azul.

Era verdade que a semana santa fora cinzenta, triste e húmida. Era uma coisa demasiado corrente para que as pessoas ligassem. Mas que, desde a manhã da Ressurreição, o tempo se tivesse transformado numa coisa tão terrível, era o suficiente para que os Florentinos sentissem nisso um sinal da cólera divina... Porque a chuva que surgira e persistia não era uma daquelas chuvas de Primavera, doces e finas, que penetram na terra, fazem inchar a seiva e surgir, espessas e vivazes, a erva saborosa dos pastos, o trigo e o centeio, as folhas novas das árvores e os minúsculos grãos verdes das oliveiras sob a sua cabeleira prateada. Era uma chuva pesada, raivosa, trazida pelo sopro furioso de um vento maldito, que arrancava a terra das encostas das colinas apesar dos muretes de pedra e a fazia descer, como um rio amarelo, na direcção da cidade e do rio que não cessava de engrossar.

O Arno transbordava. O seu leito enervava-se, agressivo, e levava para o mar tudo aquilo de que se podia apoderar à passagem: barcos mal amarrados, redes de pesca, barris, pedaços de madeira arrancados às margens, carcaças de animais e destroços de toda a espécie pertencentes às tabernas ribeirinhas ou às caves das lojas das pontes. Os palácios, graças às pedras ciclópicas sobre as quais repousavam, faziam de diques ou até de faróis. A água contornava-os e insinuava-se pelas ruas cada vez até mais longe, cada vez até mais alto. Começaram a ouvir-se orações nas igrejas e, sobretudo, claro, no Duomo, Santa Maria del Fiore, purificado, entretanto, do sangue derramado graças a grandes quantidades de incenso e água benta. Quanto ao povo, andava a cavalo, de burro ou de mula se tinha meios para isso, ou, na maior parte dos casos, ensopava o calçado se tinha necessidade de ir à parte baixa da cidade.

Fiora desceu de Fiesole, nesse dia, apesar dos esforços de Demétrios para a impedir. O isolamento severo a que a sujeitavam a prudência do médico grego e a paixão desconfiada de Lourenço de Médicis pesava-lhe. Três semanas depois de um golpe de punhal ter posto fim a Hieronyma! Três longas semanas a ver, de manhã à noite, a chuva alagar a paisagem e os terraços do seu jardim! Entretanto, a vida continuava na cidade estendida a seus pés. E ela tinha de continuar ali, esperando a noite que lhe traria ou não um amante sobrecarregado de preocupações e responsabilidades. Reduzida ao papel inactivo e até passivo de uma mulher de harém, Fiora decidira que estava farta e que precisava de se mexer sob pena de enlouquecer. Além disso, há muito que desejava ir rezar junto do túmulo do seu pai. Não faltaria mais a esse dever de amor. Assim, por volta do meio-dia, pôs-se a caminho, escoltada por Esteban. Mas teve de prometer que não se demoraria muito, porque desde o assassinato de Giuliano de Médicis durante a missa do Domingo de Páscoa Florença não era uma cidade segura, podendo inflamar-se ao menor gesto infeliz.

A igreja d’Or San Michele, onde Francesco Beltrami repousava entre outros notáveis das Artes Maiores, poderia passar por um palácio medieval sem as admiráveis estátuas de santos, obras de Donatello ou de Lourenço Ghiberti que, nos seus nichos, adornavam as suas quatro fachadas. Construída durante o século xIv no local do antigo oratório Santa Maria in Oito e de um mercado de cereais, era o único santuário florentino a possuir um celeiro sobre a sua nave dupla. Talvez fosse, também, a mais bem ornamentada, porque os mestres mais ilustres das quatro grandes corporações tinham contribuído com dinheiro para o seu embelezamento.

Or San Michele seria sombria, já que as suas aberturas eram raras e estreitas, se as muitas velas a arder não iluminassem, com as suas pequenas chamas douradas, a magnificência da sua decoração interior. O conjunto cintilava, brilhava e aureolava uma maravilha: o tabernáculo gótico de Andréa Orcagna, incrustado de mosaicos e ornamentado com baixos-relevos. Era a glória da nave do lado direito.

A laje sob a qual repousava Francesco Beltrami não estava longe desse tabernáculo, junto do qual ardia um círio. Com uma emoção profunda, Fiora deixou-se cair de joelhos. Era a primeira vez que podia ir ali rezar, já que não tivera o direito, no dia de cólera do funeral, de acompanhar o seu pai. Primeiro prisioneira, depois escondida e, finalmente, levada para longe de Florença pela tempestade que quase a destruíra, sonhara muitas vezes, com lágrimas no coração, com aquele túmulo, profanado pelo ódio supersticioso de Hieronyma, onde repousava um corpo cujo peito fora esventrado para oferecer a um demónio de madeira e cartão um coração que batera ao ritmo generoso de um homem de bem.

Curvando-se até que a sua boca e as suas lágrimas tocassem na pedra fria, a jovem permaneceu prostrada por longos momentos, envolta no seu véu negro, toda a cidade estava de luto por Giuliano de Médícis um véu que, naquele momento, assumia um significado duplo.

Pai murmurou ela meu pai! Eu amava-te, sabes, e continuo a amar-te... Amo-te, amo-te, amo-te... Se, ao menos, as minhas lágrimas te pudessem devolver a vida! Se, ao menos, eu pudesse partilhar a minha! Oh, pai, por que nos separaram? Éramos tão felizes, os dois!...

Sacudida por soluços, teria ficado ali até ao fim do dia sem que a dor diminuísse, se duas mãos, pousadas nos seus ombros, não fizessem menção de a erguer.

Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico.

Não faças mal a ti própria, Fiora! sussurrou uma voz doce. Não fiques aqui! Vem comigo!

Um pouco cansada devido à sua longa prostração, Fiora endireitou-se, enxugando com a manga as lágrimas que lhe corriam pelas faces, e ofereceu um sorriso à recém-chegada.

Chiara! És tu? És mesmo tu?

Num impulso, atirou-se para os braços da amiga reencontrada e as duas jovens abraçaram-se com o entusiasmo nascido, sempre, de uma longa separação. Um pouco mais longe, a gorda Colomba, em tempos governanta de Chiara Albizzi e agora sua criada, chorava de alegria, ao mesmo tempo que agradecia aos Céus, com a sua volubilidade habitual, aquela alegria que tinha o privilégio de testemunhar. Fiora também a beijou e depois, levando as duas mulheres por um braço, como se temesse vê-las desaparecer, arrastou-as para um dos bancos encostados às paredes da igreja.

Que alegria, ver-vos de novo! suspirou ela. Como sabíeis que eu estava aqui? Foi o acaso que vos conduziu aqui?

Não disse Chiara. Toda a Florença sabe que tu regressaste. Fala-se quase tanto de ti como dos Pazzi.

E eu que esperava passar despercebida!

Tu... ou Lourenço?

Ah!... Também sabes?

Chiara desatou a rir e Colomba, que se esforçava por parecer que estava a rezar, sorriu para os anjos:

Como toda a Florença! Querida inocente! Esqueces-te que, sempre que o nosso príncipe espirra, toda a cidade pergunta a si própria de onde terá vindo a corrente de ar? Toda a gente sabe que estás em Fiesole.

Nesse caso, por que não me foste ver?

Por discrição e também... por prudência. Lourenço não é o mesmo desde a morte do irmão e tu fazes parte de uma vida secreta que ele preserva ciosamente. O que não é difícil de compreender: quando dois seres se amam...

Mas eu não estou muito certa de que nos amemos! Caímos nos braços um do outro na noite do assassínio e assim temos ficado desde então. Mas esta situação deve-se a que ele precisava de mim e eu dele. De qualquer maneira, não durará muito.