Mãezinha, mãezinha!... Aborrecia-me tanto sem vós!
No entanto, ele conhece-me mal! disse Fiora por cima da cabeça do filho.
Conhece-vos melhor do que pensais. Falávamos-lhe de vós todos os dias e, nas suas orações, ele nunca se esquece de pedir a Deus que lhe devolva a sua mãezinha...
E o meu paizinho também! rectificou o pequenito. Quando é que ele vem, mãezinha? Não sei, meu querido. O teu paizinho partiu para uma longa viagem, mas tu tens razão em rezar ao bom Deus para que ele regresse...
Deixemo-nos de choraminguices! disse Léonarde. E ponde um pouco de lado esse jovem para me abraçar. Ainda nem me dissestes bom dia!
As duas mulheres abraçaram-se calorosamente, ainda por cima porque a velha solteirona trazia com ela uma boa notícia: o pequeno Philippe e ela estavam autorizados a visitar todos os dias Fiora na sua prisão e até a tomar na sua companhia a refeição do meio-dia.
O Rei quer suavizar os meus últimos momentos? suspirou Fiora. É uma atenção que me sensibiliza muito...
Não pensais que vos vão arrancar a cabeça e que os que vos amam vão permitir que isso aconteça?
Aqueles que me amam não terão permissão para me defender e não vejo quem quererá correr, por uma desconhecida, um risco tão considerável.
E messire Philippe, o vosso marido? Encontraste-lo?
Sim e não. Viu-o, de facto, mas perdi-o para sempre...
E, com grande sobriedade, Fiora contou o que se passara em Bruges e depois por que acaso extraordinário encontrara Philippe onde menos esperava. Enfim, o que disseram um ao outro e como ele decidira ficar no convento.
No convento! Ele!... Que disparate! Já não vos ama, então?
Ama... pelo menos é o que ele diz, mas não sei se será verdade. Ele ilude-se, ou finge, para me poupar. Vede vós, Léonarde, eu não passei de um episódio no grande sonho cavaleiresco do conde de Selongey. Um episódio que, primeiro, o envergonhou, mas que aceitou por devoção ao seu duque. Depois deste morto e da sua Borgonha perdida, nada mais lhe interessa. Não falemos mais dele, Léonarde! Preferia que me dissésseis o que aconteceu a Khatoun!
Se eu soubesse! suspirou Léonarde...
A jovem tártara desaparecera de la Rabaudière na noite do regresso de Léonarde. Ao saber que Fiora não vinha e que, pelo contrário, ia a caminho da Flandres na companhia de Florent, fechara-se no quarto e recusara-se a sair, até para comer. Na manhã seguinte aperceberam-se de que ela tinha fugido da maneira mais clássica do mundo, atando os lençóis da cama uns aos outros.
E não deixou umas palavras, umas linhas?
Nada! Péronnelle disse-me que nos últimos tempos, durante a nossa ausência, ela se encontrou secretamente, disse ela, mas numa aldeia é difícil impedir que as línguas comecem a trabalhar com um senhor jovem e belo...
Luca Tornabuoni, meu antigo apaixonado, que depois da conspiração dos Pazzi quase fez com que os carrascos de Florença a retalhassem. Se não tivesse ouvido aquele miserável com os meus próprios ouvidos, não teria acreditado...
Oh. Eu soube umas coisas que podem explicar esse facto surpreendente. Aquela pobre Khatoun e Florent eram... digamos, muito amigos. Além disso, creio que pensava não ter, na vossa casa, o lugar a que tinha direito e tinha alguns ciúmes de toda a gente.
Eu não lhe confiei o meu filho? Que outra prova de estima poderia dar-lhe?
Estima, estima! Ela queria amor... e, sobretudo, nenhuma responsabilidade! Quer queirais, quer não, Khatoun foi feita para a vida preguiçosa de um harém, para uma vida de doçuras e carícias...
Receio bem que não as consiga junto de Luca! Ele é um egoísta refinado. Se, ao menos, soubéssemos onde ela está!
Não, Fiora! Não conteis comigo para a procurar, mesmo que eu pudesse. Ela já tem idade suficiente para continuar sozinha e acaba de vos fazer mal!
Pouca coisa, comparada com tantos anos de dedicação! Oh, Léonarde! Fico tão preocupada com ela...
Léonarde não disse que preferia ver Fiora preocupada com Khatoun do que com ela própria. Aquele caso do julgamento de Deus não lhe agradava nada. No entanto, a angústia ainda não a oprimia, porque acabava de ter uma ideia: enviar uma carta à princesa Joana para o castelo de Lignières, pedindo-lhe que interviesse. Era verdade que a princesa não tinha grande poder sobre o seu terrível pai, mas a velha solteirona sabia que, perante o seu olhar verdadeiramente celestial, o Rei ficava pouco à-vontade. Podia-se pedir tudo àquele coração angélico. À falta de Mortimer, enviado, assim parecia, na véspera, em missão pelo Rei, à falta de Commynes, expedido da mesma maneira, sem dúvida para lhes tirar a vontade de entrar na liça por Fiora, Léonarde pensou confiar a sua carta a Archie Ayrlie, aquele escocês que ensinara Florent a montar. Era bom rapaz, que fora mais de uma vez esvaziar alguns jarros à Casa das Pervincas. Se ele não pudesse ir a Lignières, arranjaria forma de mandar Florent. Quanto a encontrá-lo, Léonarde não teria dificuldade, já que o via muitas vezes quando ia ao jardim com Philippe, onde o pequenito tinha autorização para passear.
O combate teria lugar na terça-feira do dia 29 de Junho, festa de São Pedro e São Paulo. Com o seu perfeito conhecimento do calendário, Luís XI escolhera aquele dia porque o Papa, sucessor de São Pedro, estava mais ou menos implicado, na pessoa do seu sobrinho, naquela história sombria. O Rei nunca perdia uma ocasião para se reconciliar com o céu, ou de o chamar em seu socorro. Pelo seu lado, Léonarde, quase tão piedosa como o soberano, acrescentara aos dois príncipes dos Apóstolos a longa lista dos hóspedes do Paraíso que ela invocava todos os dias em prol da paz e felicidade do ”seu cordeiro”...
No entanto, à medida que os dias se iam passando, Léonarde ia perdendo o sono. A velha solteirona escrevera a sua carta e Archie Ayrlie encarregara-se dela de boa vontade. Ao mesmo tempo, tomara mil precauções para não ser vista por ninguém ao entregar-lha no jardim, o único sítio onde beneficiava de alguma liberdade. Não voltara a ver o escocês e não possuía nenhum meio de saber se a sua missiva chegara a bom porto.
Com efeito, Léonarde também se encontrava submetida a estreita vigilância, não podendo sair do seu alojamento senão escoltada por um arqueiro e na companhia do pequeno Philippe. Era-lhe proibido sair sozinha. Para além desse guarda, que a levava todos os dias à prisão para se encontrar com Fiora, ou ao jardim para as saídas do pequenito, não tinha afinidades senão com as duas criadas encarregadas de a servir. Nem uma única vez se encontrou com o Rei, cujas trompas de caça se ouviam frequentemente no pátio de honra. Da sua janela podia ver aqueles que entravam ou saíam, mas como não os conhecia, essas idas e vindas não tinham grande significado. Então, quando não estava junto de Fiora e quando o pequenito dormia, passava horas a olhar para a pequena janela com grades do austero edifício em frente, que iluminava a prisioneira, e rezava, rezava para que um homem de bem, um cavaleiro digno desse nome aceitasse arriscar a sua vida para que a jovem não perdesse a sua...
Pela sua parte, Fiora preocupava-se muito menos, entregue a uma espécie de fatalismo que lhe retirava todo o medo dessa morte a mesma que o seu pai e a sua mãe tinham sofrido à qual tinha poucas hipóteses de escapar. Nem sequer queria mal a Luís XI pelo jogo cruel que inventara. O Rei sabia-o, temia tanto mais a morte quanto avançava na idade e se a sua coragem física permanecia a mesma quando ia para a guerra, o assassinato manhoso, pérfido, causava-lhe um verdadeiro horror. Talvez porque, após os seus dezoito anos de reinado e até antes, quando não passava de um delfim ferozmente hostil ao seu pai Carlos VII a sua inteligência aguda lhe permitira evitar armadilhas, traições e emboscadas. Ora, aquela carta infeliz falava no seu assassinato. No fundo, o Rei dera mostras de uma grande brandura ao propor o duelo judiciário, podia ter mandado executar em segredo a pseudoculpada ou pô-la a apodrecer, com os ossos partidos, no fundo de uma masmorra qualquer...