Se bem compreendi disse Florent quando esta terminou estivestes em guerra este ano todo que passou?
É verdade! Se me tivessem dito, quando servia em Florença na casa de ser Francesco, que teria, um dia, recordações militares, ter-me-ia rido! No entanto, como vedes, saímos dela vivas!
Separaram-se depois daquela conclusão optimista. Florent caía de sono depois da sua longa corrida e foi, com gratidão, para o cubículo que Péronnelle lhe preparara perto dos seus próprios aposentos. Como a chuva cessara momentaneamente, Étienne foi fazer uma ronda com os cães antes de ir para a cama, enquanto a sua mulher cobria de cinza as brasas da lareira que, assim, regressariam facilmente à vida na manhã seguinte. A casa, como um punho sólido e amigo, fechou-se sobre aquele novo hóspede para satisfação geral.
Sinto uma certa vergonha disse Fiora enquanto Léonarde a ajudava a despir-se em aceitar que este jovem se dedique desta maneira ao meu serviço. Seria muito mais feliz e rico se nunca me tivesse conhecido.
Feliz por trás de uma escrivaninha? Lembrai-vos, meu cordeirinho, ele passava o tempo todo no jardim da dama Agnelle. Limita-se apenas a mudar de jardim. E confesso-vos que a sua presença sob este tecto me parece bem reconfortante. Nada como uma devoção sincera para viver em paz.
Nessa noite, Fiora adormeceu com uma confiança e uma alegria que não sentia há muito, embalada pelo crepitar ligeiro da chuva que o vento vindo de oeste projectava contra as janelas do seu quarto. A chegada de Florent parecia-lhe um bom augúrio, porque a simplicidade do coração do jovem era daquelas que fazem nascer em seu redor, senão a felicidade, pelo menos uma espécie de contentamento que se lhe assemelha um pouco. As duas mãos da jovem estavam pousadas sobre o ventre, como costumava fazer para se sentir mais próxima daquela pequena vida que palpitava dentro dela e para melhor a proteger contra o que quer que fosse. Tudo estava bem naquela noite de Primavera que acabava de trazer um amigo...
A partir da manhã seguinte, Florent, que se levantara cedo, tomou o seu lugar nos usos e costumes do solar como se nele tivesse nascido. Enquanto esperava que Étienne o levasse a dar a volta da propriedade, foi buscar água para Péronnelle e renovou, por toda a casa, a provisão de lenha. Estabeleceu-se instantaneamente um entendimento entre ele e a boa mulher que, com o correr dos dias, se pôs a imaginar que um filho, talvez um pouco grande demais, lhe fora enviado do céu como um presente. Quanto a Étienne, o silencioso, o ardor no trabalho do jovem parisiense, o seu amor pela terra, pelas plantas e pelos animais conquistaram-lhe, em breve, a estima. Tinha prazer na sua companhia a todos os instantes.
Fiora não o via muito. Florent colocou, logo a partir do primeiro dia, muita discrição nas suas relações com a jovem castelã, contentando-se em avistá-la enquanto ia e vinha pela propriedade e em trocar algumas palavras quando ela aparecia no jardim. E Léonarde, que temera, por um instante, ver sem cessar pelos cantos da casa o seu rosto extasiado de amor, louvou-o pela sua conduta sábia. Além disso, tinha de admitir que o antigo aprendiz de banqueiro era, em questões de jardinagem, uma espécie de pequeno génio: à medida que lhes prodigalizava os seus cuidados, os canteiros enchiam-se de cor e perfume. Nunca se tinham visto goivos tão grandes e perfumados nem bons e peónias tão floridas. Florent, ao percorrer os arredores em busca de novas plantas, tornara-se amigo do jardineiro do castelo de Plessis, que lhe prodigalizava conselhos e sementes com uma generosidade real. Quando começaram as longas tardes do começo do Verão, Florent, vendo Fiora e Léonarde demorarem-se num velho banco de pedra para ali respirarem o odor das ”suas” rosas, da ”sua” madressilva e do ”seu” jasmim, sentiu-se pago pelas suas penas e agradeceu ao Senhor de todo o coração por lhe permitir estar perto daquela que era a mais magnificente estrela da Sua Criação...
Assim ia a vida na Casa das Pervincas, infinitamente doce e calma, longe do tumulto e furores da guerra, sem que ninguém imaginasse que nesse mesmo momento se representava um desses dramas suscitados pela loucura dos homens. Fiora preparava o nascimento do filho de Philippe sem imaginar por um único momento que em Dijon esse mesmo Philippe iria em breve subir para o mesmo velho cadafalso da praça Morimont que vira morrer Jean e Marie de Brévailles. O curso irisado do Loire e a fresca espessura das florestas encerravam-na numa espécie de anel mágico, no qual vinham quebrar-se os sons longínquos do século.
CAPÍTULO III
O PRISIONEIRO
À medida que se aproximava a data do parto, Fiora, longe de se abandonar às alegrias do repouso e às doçuras das almofadas macias, dava provas de uma actividade crescente. Não estava muito tempo no mesmo lugar para pavor de Léonarde e Péronnelle, que temiam a cada instante um acidente quando a viam trotar pelo jardim e pelo bosque, subir para a mula para ir orar ao priorado de Saint-Côme ou ir buscar ovos à granja. Havia nela uma alegria que a atirava para a frente. Parecia-lhe que, quanto mais se mostrasse forte, mais o seu filho seria vigoroso e bem constituído.
Foi assim que no vigésimo quinto dia do mês de Agosto, que era o dia de São Luís, padroeiro do Rei de França, convenceu Léonarde a acompanhá-la a Tours para ver a cidade adornada e rezar uma última vez no túmulo do grande São Martinho. Já lá fora diversas vezes, sentindo-se com isso extremamente bem, com uma grande paz de alma e queria agora tirar dessa oração uma energia suplementar para a prova que a esperava.
Léonarde torceu um pouco a orelha. A criança talvez se fizesse anunciar dentro de uma semana e não era prudente aventurar-se numa cidade em festa, mas Fiora estava tão firmemente agarrada à sua ideia que foi impossível convencê-la do contrário. Até porque Florent pôs fim à questão dizendo que poriam uma sela de mulher bem estofada na mais doce das mulas e que, de
1 A sela de amazona ainda não tinha sido inventada a sua autora foi Catarina de Médicis As mulheres viajavam numa espécie de cadeira de espaldar, onde iam sentadas como numa cadeira vulgar
qualquer maneira, ele escoltaria as damas para as proteger se houvesse grandes multidões nos adros das igrejas e nas ruas.
Nesse dia fazia um tempo delicioso, de uma grande doçura e bem agradável depois dos fortes calores que, durante uma quinzena, tinham caído sobre a região, obrigando Florent a uma intensa actividade para manter o seu jardim vivo e fresco. O céu estava de um azul-profundo, semeado de pequenas nuvens brancas que se pareciam com cordeiros e toda a natureza, lavada pela grossa chuva que se seguira a uma vigorosa tempestade, resplandecia de verdura e de flores, como se estivesse na sua primeira juventude.
Enquanto a ajudava a sentar-se na pequena cadeira fixada na albarda da mula, Florent pensava que Fiora, a despeito da sua cintura deformada, estava mais bela do que nunca. O seu vestido de algodão fino e o véu fixado num toucado em forma de crescente eram do azul terno da flor do linho, reflectindo-se nos seus olhos e fazendo cantar a sua tez delicada. Nenhum sinal desagradável lhe desfeava o rosto e o bater das suas pálpebras dava-lhe ainda mais encanto. E o bravo jovem, com a simplicidade do seu coração, perguntou a si próprio como podia um homem, que tivera a incrível sorte de a ter nos seus braços, de beijar os seus doces lábios, de mergulhar as mãos naquela cabeleira sedosa, aceitar viver, nem que fosse por um único dia, longe de tanta graça. Era preciso que aquele conde de Selongey fosse um grande imbecil e, pela sua parte, Florent esperava nunca mais o ver. Entraram em Tours pela porta de La Riche, a mais próxima do solar e foram imediatamente apanhados pelo encanto. A despeito da ausência do Rei, que não voltaria a ver, talvez, antes do Outono, a cidade parecia uma noiva em dia de casamento. As janelas tinham as mais belas colchas, as mais belas tapeçarias, picadas com todas as flores dos jardins. Se bem que fosse sexta-feira, todos os habitantes tinham os seus trajes de domingo. No entanto, e porque era dia de mercado, as lojas estavam abertas. Entre dois ofícios religiosos, todos, naquela manhã, se dedicavam às suas ocupações.