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Em redor da antiga basílica de São Martinho, do seu claustro e das suas torres românicas, a animação já era grande, porque era um dos mais importantes locais de peregrinação da Europa. Há mais de mil anos que, nas margens do Loire, naquele mesmo local, o corpo de Martinho, soldado romano tornado bispo e confessor, por amor, dos seus irmãos humanos, atraía multidões vindas de todos os horizontes. Dizia-se que o santo ressuscitara três mortos e restituíra a saúde a milhares de doentes incuráveis. Leprosos, enfermos, dementes a quem chamavam lunáticos e até possessos, tinham-se visto livres dos seus males e purificados devido ao simples contacto com o seu túmulo. Assim, os peregrinos vinham, numerosos, em busca daquela esperança que era, além disso, uma etapa do ”caminho das Estrelas”, a longa estrada que, dos países nórdicos, ia até Santiago de Compostela.

A igreja actual era a quarta a ser construída sobre o sepulcro de Martinho, morto por volta do ano 400. Houvera, primeiro, um modesto oratório de madeira e depois uma capela que perecera num incêndio sem que, aliás, o santo sepulcro tivesse sido atingido. O bispo Henri de Buzançais, após os terrores do ano mil, tinha mandado construir uma basílica, mas esta teve algumas desgraças e foi necessário reconstruí-la entre o xi e o xiI séculos, ao ponto de a igreja ser praticamente nova. O Rei Luís e a sua generosidade velavam por ela. O soberano assegurava a sua manutenção e quase não se passava um ano sem que fizesse uma doação, apesar de a sua grande devoção ir para Notre-Dame de Cléry.

Como era hábito, a igreja estava cheia quando Fiora e Léonarde, deixando Florent a guardar as montadas, se esforçaram por penetrar nela. Homens, mulheres, velhos, crianças, peregrinos de passagem ou doentes na maior parte, amontoavam-se sem brutalidade, esperando até, sensatamente, a sua vez de se aproximarem do sepulcro através do deambulatório que rodeava o coro. Todos cantavam louvores a Deus e à glória do grande São Martinho, ao mesmo tempo que os monges faziam os possíveis para os canalizar e, sobretudo, convencer aqueles que tinham chegado ao fim a dar lugar aos outros. Alguns, com efeito, agarravam-se às grades douradas, pretendendo ficar ali até que

1 Onde está enterrado.

o voto fosse satisfeito e suplicando que não os arrastassem dali. No entanto, a era das grandes peregrinações tinha passado. O século presente era de uma fé menos exaltada e já não se ia tantas vezes a Roma e ainda menos a Jerusalém. Apenas Compostela, na Galiza, continuava a atrair as multidões que percorriam os numerosos caminhos que estrelavam a Europa, mas as grandes peregrinações da Páscoa já estavam longe naquele mês de Agosto. São Martinho de Tours, assim como Lê Pu, Conques, o Mont Saint-Michel-au-péril-de-la-mer e muitos outros grandes centros de piedade conservavam, no entanto, numerosos fiéis, os que não temiam uma ou duas centenas de léguas.

Vendo tanta gente, Léonarde quis evitar a Fiora uma espera em pé demasiado longa, mas a jovem resistiu. Esta decidira que naquele dia pediria a protecção do santo e nenhuma força humana a impediria de tomar o seu lugar na fila de espera. Aliás, apercebendo-se do seu estado, uma peregrina e um velho monge, que dirigiam um grupo de fiéis vindos da Normandia, arranjaram-lhe um lugar e ela pôde aproximar-se do relicário que, parecendo um sol, irradiava no coro do venerável santuário. As centenas de círios que o rodeavam acendiam cintilações no revestimento de ouro e prata e nas profundezas das pedras preciosas de diversas cores que nele estavam encastoadas.

Fiora ajoelhou-se junto do sepulcro e estendeu a mão através das grades para chegar a uma das placas de ouro cinzeladas. Os seus dedos encontraram um grande topázio polido, que acariciaram. Ao mesmo tempo, dirigiu ao habitante do precioso sarcófago uma oração fervorosa, talvez a mais ardente que formulava há muito tempo. A fé perdida durante meses voltara com a certeza de ser a única no coração de Philippe, mas nunca atingiria o grau de devoção confiante e pleno de certeza de Léonarde. Para a velha solteirona só havia uma solução para os problemas que não conseguia, por si só, vencer: o recurso a Deus, à Virgem ou ao santo mais apto, segundo a sua especialidade, para a satisfação do pedido. Naquele dia, e porque pedia pelo seu filho, Fiora rezou com todas as forças da sua alma.

Ao deixar a igreja, a jovem sentia-se mais serena. O bebé já podia vir ao mundo. Fora confiado a São Martinho e ela agora estava certa de que seria belo, forte e puro de todo o mal. Assim, distribuiu esmolas pelos mendigos que solicitavam a sua caridade, feliz por ouvir as bênçãos com que eles a cobriam e os votos que formulavam pela sua maternidade.

Pelo braço de Léonarde, demorou-se um instante a seguir as evoluções de um saltimbanco que rodopiava numa corda estendida entre duas estacas. O rapaz era jovem, ligeiro, sorridente e no seu fato matizado, parecia uma chama volteando no ar pela vontade de um mágico invisível.

Se quereis fazer compras, temos de nos apressar aconselhou-a Léonarde. Vamos ter com Florent.

Ao aproximarem-se do local onde tinham deixado as mulas, as duas mulheres viram que o jovem estava a conversar com um estrangeiro. Estes não eram raros em Tours, tal como nos outros lugares santos, mas o interlocutor de Florent apresentava um aspecto suficientemente particular para chamar a atenção. Alto, magro e até ossudo, o seu rosto em forma de lâmina de faca mostrava uma tez bronzeada e uns olhos negros de mediterrânico. O seu fato era o de um mercador abastado, mas tinha uma certa maneira de levar maquinalmente a mão à cintura, como se procurasse o punho de uma espada, e isso despertou Fiora.

Ao vê-las aproximarem-se, o homem saudou profundamente as duas mulheres, endereçou a Florent uma despedida desenvolta com a ponta dos dedos e perdeu-se na multidão.

Quem era aquele homem? perguntou a jovem.

Um mercador. Veio comprar sedas, mas o que é engraçado é que é vosso compatriota, dona Fiora.

Florentino? Parece-me que, se já o tivesse visto, lembrar-me-ia!

Não. Não é de Florença. É de uma outra cidade cujo nome esqueci. E não me pergunteis o seu, porque compreendi-o mal e seria incapaz de vo-lo repetir...

Interessante disse Léonarde, zombeteira. Podeis, ao menos, dizer-nos o que queria?

Posso. Ele reparou na beleza das nossas mulas e queria comprar uma para substituir a que morreu de doença. É claro que recusei sem lhe dar a mínima esperança. Foi por isso que se afastou ao ver-vos aproximar, sem dúvida para não parecer importuno.

O que supõe uma grande delicadeza disse Léonarde. É curioso, mas não me parece que seja homem para tais escrúpulos. Fiora, essa, não disse nada. Não gostara do olhar que o desconhecido lhe dirigira. Não se parecia, de todo, com os olhares masculinos a que estava habituada. Não tinha qualquer admiração, qualquer doçura, antes uma crueldade fria juntamente com uma expressão de triunfo, que lhe provocara um arrepio na espinha. Fora como se, saindo de um local iluminado, se visse subitamente em frente de um abismo, no fundo do qual rastejassem animais imprecisos. Estais tão pálida! notou Léonarde de súbito inquieta, Quereis regressar? Não, não, estou bem! Não quero regressar sem ter feito as minhas compras. A má impressão desapareceu imediatamente face à luz quente do Sol e à alegria geral. Os sinos despejavam na cidade um carrilhão pleno de alegria e Fiora adorava o som dos sinos: atribuiu rapidamente o que acabava de sentir a um aumento de nervosismo devido à gravidez e foi alegremente que subiram todos para as mulas para percorrer a Grand Rue que atravessava a cidade de leste para oeste, desde a porta Billault, ou da porta de Orleães à porta de La Riche. O espectáculo da rua, apesar de não ser um dia de festa, era recreativo. Um pouco por toda a parte demoliam-se os edifícios mais velhos para construir outros novos e não era raro ver uma bela casa de madeira nova, de empenas flamejantes, com a loja aberta no rés-do-chão e um jardim nas traseiras, vizinho de um terreno ainda vago ou de um casebre que ainda não recebera o golpe de picareta dos demolidores. O Rei Luís, que gostava mais daquela cidade do que da sua capital, não cessava de se preocupar com ela: queria-a rica, poderosa, soberba e mais bem construída do que qualquer outra. Fora ele que decidira estabelecer em Tours fábricas de tecidos de seda, de ouro e de prata, cuja reputação começava a estender-se para lá das fronteiras e os diversos portos estabelecidos no Loire, na base das altas muralhas que cercavam a cidade, tinham uma actividade incessante. Porque a seda bruta, cujo único fornecedor era até há pouco Florença, era trazida do Oriente pelos navios franceses. E os burgueses de Tours, que no princípio se tinham insurgido contra a presença de operários vindos do lado de lá dos Alpes, tinham acabado por compreender que, uma vez mais, o seu Rei tivera razão e que a sua visão, a longo prazo, lhe permitia, sempre, ultrapassar os acontecimentos e produzir riqueza.