Fiora não permitira que acendessem nenhuma das lareiras sempre preparadas em todas as chaminés da casa, assim como a lamparina colocada na sua cabeceira. Não lhe apetecia ler, se bem que o livro junto dela fosse um dos discursos de Platão de que ela mais gostava desde a sua infância estudiosa. De que lhe servia a sabedoria grega no fundo de um solar perdido entre o rio e a floresta, quando o seu coração e o seu espírito flutuavam à deriva sem saberem para que lado se virarem? A única coisa viva, naquele quarto, era a brisa da noite que passava por um dos vitrais abertos da sua janela e lhe trazia o odor a folhas molhadas que uma chuva recente estendera pelo jardim.
Um após outro, os odores familiares da casa apagaram-se. Fiora ouviu Florent tirar água do poço do pátio para que Péronnelle a tivesse quando, de manhã, acendesse o fogo da cozinha. Depois foi o passo de Étienne, que fazia uma última ronda e assobiava aos cães antes de se ir deitar nos alojamentos da criadagem; o das portas que Léonarde fechava uma após outra, aferrolhando-as; o estalido ligeiro da escada de madeira do segundo andar sob o peso de Péronnelle, que se encaminhava para o seu quarto, seguido mais leve do de Florent. Por fim, o ligeiro ranger da sua própria porta quando Léonarde a entreabriu para se assegurar de que Fiora dormia. No quarto vizinho, o bebé chorou um pouco e Marcelline cantarolou alguns compassos de uma velha canção de embalar para o adormecer, enquanto Fiora ouvia o leito ranger sob o peso da ama. Terminara.- a casa cessara de viver para deixar entrar os sons nocturnos dos campos que a rodeavam. Tudo estava em ordem, tendo cada um dos habitantes do solar levado consigo, para a depositar, a sua carga de preocupações e penas até ao regresso do dia. Apenas Fiora não depositara nada, se bem que tivesse tentado com todas as suas forças. Ter-lhe-ia feito bem esquecer as penas, os deveres e as obrigações que a sua viuvez e a honra do nome que usava lhe criavam, já que não era o que fora até ali: uma mulher muito jovem que não tinha ainda vinte anos, com um corpo feito para o amor e que nunca mais conheceria as carícias nem o sol vermelho do prazer, uma alma demasiado atormentada que queria viver, mas que não tinha a coragem para o fazer. Que esperar de uma vida onde já não haveria o riso de Philippe, as mãos de Philippe, a boca de Philippe, o corpo de Philippe, cujo peso imperioso e doce ela sentia ainda, ao fechar os olhos, quando ele a obrigava a abrir-se...
O pensamento da morte voltou-lhe à cabeça, como muitas vezes desde que reencontrara Mathieu e, nessa noite, impunha-se-lhe com mais força do que nunca Se desaparecesse, os que amava, os raros seres que a vida lhe deixara, poderiam continuar a viver naquela casa onde se sentiam tão bem. Enterrá-la-iam na ilha, perto do priorado de Saint-Côme, para que pudesse repousar em terra bendita e Léonarde iria pôr-lhe na campa, todas as manhãs, ramos de lilases, de peónias, de rosas e madressilvas, de cravos, de pervincas ou de campainhas-de-inverno, conforme as estações. Nas suas mãos, o pequeno Philippe ficaria bem, seria bem educado e, certamente, o Rei não lhe tiraria a sua protecção. Sim, seria a melhor das soluções, na condição de a morte vir naturalmente. Um suicídio só atiraria o opróbrio para cima daqueles que amava, a menos que a sua morte parecesse um acidente? Os pescadores da região diziam que o Loire tinha turbilhões estranhos, correntes violentas e fundões profundos. Mais de um imprudente tinha ali perdido a vida ao banhar-se.
Evidentemente, já não se estava na estação dos banhos. As manhãs já estavam frescas e brumosas, apesar de os pôr do Sol guardarem um pouco de calor nas suas cores púrpuras e douradas.
Fiora fechou os olhos para melhor saborear a ideia que tinha daquela maneira de deixar este mundo e não se apercebeu que, à força de se imaginar naquela prostração fatal, acabara por adormecer...
Acordou-a uma angústia súbita, que a fez sentar-se no leito com o coração a bater e a fronte cheia de suor. O quarto estava obscuro, mas levantara-se vento e o batente da janela batia contra a parede. Fiora atirou para o lado o lençol que tivera apertado contra o peito e quis levantar-se para ir fechá-la. Não teve tempo de pôr os pés no chão: o choque sufocante de um cobertor abateu-se sobre ela e sentiu, de imediato, uns braços rodeando-a e esforçando-se por segurá-la, ao mesmo tempo que uma corda a atava. A jovem debateu-se com uma energia selvagem e gritou:
Socorro!... Ajuda!... Aaaaah!
Procurando a sua garganta às apalpadelas, uns dedos sufocaram-lhe os gritos, mas a jovem ouviu outros que se faziam eco dos seus. Ouviu Marcellinne e também Léonarde, gritando e suplicando ao, ou aos agressores, que a libertassem. Houve, também, um ruído de luta seguido de um gemido de dor e depois uma voz áspera:
Estai quietas, ou esgano o miúdo como se fosse uma galinha!
Não! uivou Léonarde! O bebé não, o bebé não... por amor de Deus!
Deixai Deus em paz e dizei ao homem que vá fechar os cães se não quer que os degolemos. Um de nós vai acompanhá-lo para que não se afaste...
Através da espessura do cobertor, Fiora ainda ouviu a voz aguda de Péronnelle que berrava palavras sem nexo e, como a pressão que a martirizava pareceu abrandar, tentou desembaraçar-se daquele sufoco.
A jovem quis gritar de novo, mas, ao primeiro som, os dedos que lhe tinham abandonado a garganta apertaram-se, estrangulando-lhe o grito. Ela sufocou, ao mesmo tempo que um véu vermelho lhe caía diante dos olhos. Com um desespero brutal, pensou que ia morrer ali, estrangulada por um bandido qualquer, se bem que a voz que ouvira fazer ameaças, com um ligeiro sotaque estrangeiro, não lhe fosse desconhecida. Era demasiado estúpido acabar assim! Fiora encontrou forças para um último gemido antes de cair numa inconsciência total.
A água fria que lhe atiravam ao rosto acordou Fiora. A jovem tossiu e quis levar as mãos ao pescoço que lhe ardia, mas a corda que lhe manietava os braços afastados impediram-na. Abrindo penosamente os olhos, viu que se encontrara num pequeno quarto obscuro e inteiramente feito de pranchas de madeira que lhe davam o ar de uma caixa. Uma vela, pousada sobre um tonel, escorria cera e deitava fumo exalando um odor acre e, cortada num dos lados, uma pequena abertura quadrada deixava passar um pouco de bruma. Fiora estava deitada numa enxerga,t ainda vestindo a camisa com que se deitara e um cobertor talvez o mesmo com que a tinham atado cobria-a. A água correu-lhe ao longo das faces e do pescoço, molhando-lhe desagradavelmente os cabelos. Fiora virou a cabeça para ver de onde ela vinha e deixou sair um grito de pavor, ao mesmo tempo que tentava afastar-se o mais possível, o que via não era um rosto, antes um longo bico branco e uns grandes olhos bulbosos raiados de vermelho...
Quem sois vós? Que quereis?
Conversar, minha bela, conversar, simplesmente. Temos um longo caminho para percorrer, os dois, que será como tu decidires: relativamente agradável... ou muito penoso. De qualquer maneira, serás vigiada de perto e não te darei a menor hipótese de evasão.
Mais uma vez, quem sois e para onde me trouxestes? Dir-se-ia que estamos num barco?
Com efeito, o quadrado de madeira que encerrava a sua enxerga mexia ligeiramente e ouvia-se, no exterior, um ligeiro estremecimento, que podia ser provocado pela água contra um casco.
Bem adivinhado! Estamos, de facto, numa barca que desce o Loire, uma honesta barca de mercador, na qual ninguém terá a ideia de nos procurar, admitindo que somos procurados! O tom sarcástico do homem-pássaro passou, como uma grosa, pelos nervos de Fiora: Os da minha casa? Que fizestes deles? O meu filho não está... Morto? Por quem me tomais? Quanto aos da vossa casa, como dizeis, à excepção de um jovem energúmeno de cabelos desgrenhados que um dos meus homens feriu, portaram-se tão bem quanto possível, amarrados como salsichas. Espero, para bem deles, que alguém os liberte um dia destes.