Florent está ferido? Gravemente?
Não me façais mais perguntas! Eu não sei nada. E se vos posso dar um conselho, é que esqueçais essa gente. Passar-se-á muito tempo até que os possais ver de novo... se chegardes a vê-los, um dia!
Fiora torceu-se para tentar libertar as mãos, mas conseguiu, apenas, aumentar a dor. O homem mascarado porque era apenas uma daquelas máscaras que os médicos usam em tempos de peste inclinou-se para ela:
Se vos portardes bem, liberto-vos as mãos. Aliás, já vo-lo disse, sereis vigiada constantemente.
Nesse caso, por que razão me atastes?
Para que compreendêsseis melhor o que arriscais! Erguendo com uma mão o cobertor que cobria a jovem,
o homem pegou num punhal com a outra mão e rasgou a camisa de alto a baixo. O tecido sedoso deslizou de ambos os lados, revelando o corpo de Fiora na sua nudez total. Instintivamente, ela fechou os olhos com força para não ver mais nada: o que era uma reacção infantil. Não via nada, com efeito, mas sentia... Sentia os dedos duros do homem em redor dos seios e ao longo do ventre e mais abaixo ainda, entregues a uma exploração indiscreta. Ela torceu-se para escapar àquelas mãos que tomavam posse do seu corpo e gritou:
Deixai-me! Proíbo-vos de me tocar.
Cala-te, senão amordaço-te! Tu és bela, pequena, mas isso já eu sabia. Portanto, decidi o seguinte, porque devo entregar-te viva e no melhor estado possíveclass="underline" ou te mostras submissa, tranquila, e ficarás apenas fechada em minha casa. Ou me causas problemas, e ficarás acorrentada na carraca que nos espera em Nantes e entregar-te-ei aos meus homens todas as noites. Eles são dez, entre os quais se encontra um tuaregue e um negro do Sudão. Mas, está claro, serei o primeiro... e, por todos os diabos do inferno, pergunto a mim próprio por que não hei-de começar já! A mim o prémio!
O homem arrancou a máscara que lhe servira para assustar as pessoas do solar e Fiora, sem uma verdadeira surpresa porque esperava mais ou menos aquilo desde há alguns instantes, reconheceu o estrangeiro do adro de Saint-Martin, aquele que Florent vira rondar a casa. A jovem achara-o feio e inquietante por ocasião do primeiro encontro, mas desta vez o seu rosto, inflamado pela luxúria, pareceu-lhe a imagem do demónio. Compreendendo que ele ia violá-la sem demora a despeito do que dissera, ela lançou um longo grito que deve ter ecoado nas duas margens do rio. Furioso, ele aplicou-lhe uma mão brutal na boca, que ela mordeu. Por sua vez, ele gritou e depois, com todas as forças, esbofeteou-a várias vezes com precisão, para que as bofetadas fizessem o maior dano possível.
A cabeça de Fiora ia e vinha. Já não gritava, gemia, e as lágrimas de dor corriam-lhe pelo rosto abaixo, que ia ficando cada vez mais ardente. E depois, algo aconteceu. Alguém entrou na cabina e esmurrou o seu atormentador. Meio atordoada, a jovem, primeiro, não viu nada senão uma sombra que lhe pareceu gigantesca através das lágrimas. Depois, dessa sombra saiu uma voz extraordinária. Profunda como o mar, tinha a espessura untuosa de um bálsamo.
O mestre disse: viva e de boa saúde! Nada de ferimentos e nada de maus tratos, senão, não paga. E olha! Ela está a sangrar.
Ela mordeu-me, a galdéria. Gritou, gritou...
Domingo ouviu. Deixa-a e pensa na recompensa. Esta mulher vale muito ouro. Vai!
A porta rangeu de novo para saudar a saída do estrangeiro. Então, Fiora viu que aquilo que tomara por uma sombra era uma espécie de colosso negro cujo rosto e mãos se distinguiam mal das roupas sombrias e do turbante cor de borra de vinho que trazia. Quando ele se aproximou do leito, a chama da vela revelou o branco-leitoso dos grandes olhos castanhos e o brilhante dos dentes que apareciam entre uns lábios parecidos com duas almofadas avermelhadas. O homem olhou por um instante para a jovem atada à enxerga, como a vítima de um sacrifício qualquer monstruoso e encolheu os ombros. Os olhos de Fiora não eram outra coisa senão uma interrogação angustiada. A jovem tremia ao mesmo tempo de frio e de medo, porque aquele rosto sombrio não tinha nada de tranquilizador, mas as suas mãos tinham muito de doçura quando ele a cobriu com os dois bocados da camisa e com o cobertor. Em seguida, tirando do grande cinto que lhe envolvia o ventre um longo punhal de lâmina curva, cortou a corda que lhe atava os pulsos. Fiora suspirou de alívio e massajou os pulsos doridos antes de meter os braços por baixo do calor do espesso tecido lanoso.
- Obrigada murmurou ela e obrigada também pelo que fizestes há um instante. Dizeis-me quem sois e qual...
Não fales! Dorme!
Como posso dormir na situação em que me encontro?
Não compreendeis...
Vais dormir. Com isto.
O negro tirou da sua túnica uma pequena caixa de prata, fazendo sair dela uma pílula que meteu na boca da jovem. Em seguida, pegando num jarro de água pousado a um canto, fê-la beber um gole.
Dorme! repetiu ele Domingo fica aqui.
A droga devia ser forte porque, mal a engoliu, Fiora sentiu o corpo distender-se sob a influência de um torpor que não era nada desagradável. Antes de fechar os olhos, teve tempo de ver o negro sentar-se de pernas cruzadas perto da estreita abertura por onde entrava o ar e fazer deslizar por entre os dedos as contas de um pequeno rosário de âmbar.
Quando reabriu os olhos após um tempo impossível de avaliar, a estreita cela de madeira estava iluminada por um raio de sol vermelho e horizontal que anunciava o ocaso. O homem negro desaparecera e Fiora viu que estava só. Endireitando-se, descobriu roupas pousadas a seus pés e apressou-se a vesti-las. Uma camisa e uns calções de tela de Flandres de boa qualidade, um vestido de tiritana grená com um cinto de couro entrançado e mangas abotoadas e, por fim, meias e uns sapatos que ela reconheceu por serem os mesmos que descalçara na véspera, quando se deitara. Estavam longe de ser elegantes, mas, vestida assim, Fiora sentiu-se melhor e, sobretudo, mais segura. Um véu e um grande manto negro com capuz completavam o equipamento. Deixou estes de lado e aproximou-se da abertura que deixava entrar a luz para aspirar o ar tépido já carregado de odores marinhos.
A barca continuava a avançar, empurrada por umas longas varas cuja entrada regular na água ela podia ouvir e pela corrente
Tecido grosseiro, meio lã meio algodão.
do rio. Uma margem coberta de ervas altas e orlada de caniços desfilava lentamente à altura dos seus olhos. Estava muito próxima e Fiora sentiu-se, irresistivelmente, tentada a tocá-la, a juntar-se-lhe. Tinha de arranjar um meio de deixar aquele barco e escapar àqueles inimigos desconhecidos que a levavam sabia Deus para onde. Talvez para África? O homem, no dia anterior falara de uma carraca à espera em Nantes e o negro Domingo dissera que ela valia muito ouro. Seria possível ter sido raptada para ser vendida como escrava a um sarraceno qualquer?
Para avaliar as suas hipóteses, a jovem aproximou-se da porta. Esta estava fechada à chave, claro, mas não parecia muito sólida. Tinha aquele aspecto frágil, um pouco vacilante, dos batentes que só estão seguros por um cadeado. Talvez fosse possível soerguê-lo introduzindo um objecto comprido e fino na ranhura? Fiora começou uma inspecção minuciosa à sua prisão, na esperança de encontrar o que precisava para quando chegasse a noite.
Evidentemente, não sabia para onde dava aquela porta, nem o que se encontrava por trás dela. O falso mercador falara em dez homens, mas Fiora precisava daquela actividade, que lhe permitia sonhar com a sua libertação, para não cair, de novo, no desespero.
A estrutura do leito era constituída por umas dobradiças de ferro lisas, das quais uma era móvel. Ajoelhada, Fiora tentava arrancá-la quando a voz profunda de Domingo a fez estremecer. A despeito do seu tamanho e peso, o negro entrara sem fazer mais barulho do que um gato: