Trabalhaste bem. Graças a ti, eis-nos em segurança neste barco e a nossa bela prisioneira já não nos pode escapar. Podes libertá-la. Em seguida, deixa-nos sós.
Sem uma palavra, o grande negro desembaraçou Fiora das cordas, mas retomou o seu lugar à cabeceira da cama com uma firmeza que não deixava qualquer dúvida acerca da sua determinação. O outro fez uma careta:
Então? Não ouviste? Disse-te para nos deixares sós!
Não. Domingo foi enviado contigo unicamente para velar pela prisioneira. Ele responde por isso. Domingo vela e velará.
Mas, enfim insurgiu-se Fiora que, ao reencontrar a liberdade de movimentos, se sentia mais forte sois capaz de me dizer para onde me levais? Esse homem, ontem, disse que eu valia muito ouro. Quem é que dá esse ouro? Não ides, espero, entregar-me a um pirata sarraceno qualquer?
Ficai descansada! Essa gente não é suficientemente rica e é verdade que valeis muito ouro.
Então, quem? Para quem vela Domingo por mim? A quem é que ele responde por mim?
Ao Papa!
Fiora pensou que era uma brincadeira e encolheu os ombros.
. Não tendes piada nenhuma! Respondei-me seriamente.
Que arriscais, agora?
Mas, eu respondi-vos seriamente.
. Nesse caso, mentis! O Papa está em Roma. Se me levásseis para lá, devia estar, neste momento, atada no fundo de uma liteira ou de uma carroça a caminho de Marselha ou de outro porto qualquer da costa mediterrânica. Ora, ensinaram-me geografia suficiente para saber que vogamos no grande oceano.
Peste! Sabichona. Muito bem, minha querida, ficais a saber que vamos, de qualquer maneira, para Roma. A viagem, contornando a Espanha, é, sem dúvida, mais longa, mas mais segura. Não temos nada a temer, nesta carraca, dos vigias do Rei Luís. Por terra, arriscávamo-nos a deixar vestígios. Por aqui, não. De qualquer maneira, Sua Santidade não tem pressa. Ele disse-me: ”Gian-Battista, leva o tempo que for preciso para que a tua missão tenha sucesso. Se regressares no fim do ano, ficaremos satisfeitos.
Embasbacada, Fiora não acreditava no que os seus ouvidos lhe diziam.
O Papa! repetiu ela. Mas, que quer o Papa de mim? Tendes a certeza de que não vos enganastes?
Certeza absoluta. Vós sois dona Fiora Beltrami? O vosso amigo Nardi, que nós visitámos em Paris, deu-nos todas as certezas quando o... convencemos a dizer-nos onde estáveis escondida.
Um desagradável arrepio percorreu a espinha de Fiora. Aquele miserável sublinhara a palavra ”convencemos” de modo a enchê-la de medo.
Eu não estava escondida, mas espanta-me, de qualquer modo, que Agnolo Nardi vos tenha feito confidências.
Ele não estava muito disposto a isso. Até deixou que lhe
assássemos um pouco a planta dos pés. Não muito, ficai tranquila! Tivemos uma ideia melhor, ameaçando que faríamos o mesmo à mulher. Tornou-se, logo, mais falador! E, claro, tratámos de que não vos enviasse qualquer mensagem. Foi no seguimento desse encontro que tive o prazer de vos ver em Tours.
Horrorizada, revoltada de terror e desgosto, Fiora, com as garras de fora, saltou como uma pantera furiosa à garganta do miserável.
Ousastes? Em plena Paris! Atacar o melhor dos homens, a mais doce das mulheres! Que lhes fizestes? Respondei-me! Quero saber.
Surpreendido pelo ataque, o homem, sufocado, defendeu-se molemente. As forças da jovem estavam duplicadas pela raiva e talvez tivesse acabado com o seu inimigo se Domingo não a tivesse detido a tempo. O homem deixou-se cair no chão, massajando dolorosamente a garganta. Com a voz enrouquecida, lançou sobre a jovem uma torrente de injúrias italianas, às quais, fazendo apelo às suas recordações, ela respondeu com brio. Por um instante, a cabina ficou a parecer-se com um mercado da península, onde as disputas são o pão quotidiano. Fiora, um pouco espantada com aquele vocabulário metafórico que lhe vinha involuntariamente à mente, viu-se, de novo, uma florentina até à ponta das unhas e Domingo teve muita dificuldade para impedir que os dois adversários se pegassem de novo.
À fé de Montesecco! uivou Gian-Battista já se viu semelhante megera? Uma pantera não seria mais ruim.
Ousas falar de ruindade, miserável rufião? Quero saber o que aconteceu aos meus amigos!
Estão tão bem como tu e eu, melhor, talvez, do que eu. A partir do momento em que tive o que queria, deixaram de me interessar. Fica descansada, pode continuar a roubar os clientes. Quanto a ti... dá-te por feliz por não te pôr no fundo do porão. Tu vais ficar aqui com ela, Domingo! Se ela conseguir escapar, podes ter a certeza que te farei voar essa cabeça negra, por mais preciosa que o Papa a considere. Quanto a mim, estou farto de vós os dois.
O homem saiu titubeando um pouco para grande, mas fugaz satisfação da prisioneira, depressa assaltada de novo pela ansiedade. Que lhe poderia querer o ”vigário de Cristo”? Nada de bom, certamente. A jovem fizera malograr os seus planos acerca de Florença e enviado para uma jaula de ferro o homem que Sisto IV encarregara de apunhalar o Rei de França. Não era, certamente, para a cobrir de flores, que se dera ao trabalho de montar aquele rapto. Talvez o tempo de duração da viagem servisse para medir o tempo que lhe restava de vida? Que outra vingança, senão a morte, podia exercer o Papa?
Subitamente, o estômago de Fiora foi acometido por uma violenta náusea. O pesado barco, que atingira o alto mar, balouçava nas grandes vagas do Atlântico. A jovem, acometida por um enjoo tão súbito quanto imprevisto, conseguiu arranjar forças e deixou-se cair em cima da cama.
Certo de que ela não mexeria um dedo, Domingo saiu para ir buscar água.
Segunda parte
AS ARMADILHAS DE ROMA
CAPÍTULO V
OS DO VATICANO
Sua Santidade Sisto IV não estava de bom humor. O mau tempo que assolava Roma desde há vários dias, frio e húmido, tornava mais doloroso o seu reumatismo e acordava até, por instantes, a gota latente que o atormentava tanto e tão cruelmente. Para evitar uma nova crise, o Papa comera frugalmente legumes e lacticínios, sem o mais pequeno dos copos daquele vinho de Castelli Romani de que tanto gostava. Assim, enquanto o seu estômago gritava de fome, o Papa, com dois favoritos nos calcanhares, aproveitava as tréguas que a chuva lhe concedera para atravessar a praça do Vaticano e ir inspeccionar o estaleiro da sua capela em construção.
Ia em passo apressado, envolto num gorro duplo de raposa, o ”camauro”, debruado a pele e enfiado até às sobrancelhas para se proteger do frio. Grande e quase tão largo, de feições duras, nariz na linha da fronte, queixo agressivo, boca cerrada, olhar inquisidor e cabelo grisalho, o seu rosto berrante era totalmente barbeado. A sua silhueta sem elegância, que lhe dava o ar de estar sempre embrulhado na roupa que vestia, conferia-lhe, mesmo assim e ele sabia-o uma impressão de força que não era desprovida de majestade.
A despeito dos joelhos doridos, Sisto ultrapassou com relativa facilidade os materiais que se amontoavam no estaleiro. u trabalho não avançava segundo a sua vontade. Havia mais de Quatro anos que aquela capela começara, ainda nem sequer
1 A Capela Sistina
punha a questão do telhado e o pontífice só se deslocara ali na intenção de dizer das suas aos da obra. Quando tinha pela frente uma contrariedade, era preciso outra coisa, que não as suas velhas dores, para o impedir. Além disso e os seus favoritos sabiam-no adorava encolerizar-se.
Desta vez, não tinha razão. Resolvera mandar construir aquela capela para dar ao Vaticano um lugar de culto digno do trono de Pedro, um recinto vasto onde a pompa papal pudesse mostrar-se à-vontade, coisa impossível na velha basílica onde repousava o túmulo do Príncipe dos Apóstolos. Esta não passava de uma velha igreja decrépita, pouco mais imponente do que a igreja de um prior de província com o seu campanário de esguelha e o telhado inclinado sobre três abóbadas sobrepostas em arco de volta inteira. Tinham-se feito algumas reparações, mas o conjunto permanecia mortificante e, sobretudo, cheio de correntes de ar. A nova capela seria nobre, muito alta para que a música e os cânticos pudessem ter toda a amplitude, e magnificamente decorada, para que os séculos vindouros conservassem a recordação do construtor. E Sisto, que decidira baptizá-la de capela da Conceição, esperava, no seu íntimo, que o seu nome lhe ficasse ligado. Ao verem chegar o Papa, os operários, que trabalhavam a bem dizer molemente, desataram a manejar as colheres com ardor, ao mesmo tempo que as grandes pedras voavam em cima dos palancos. Na esperança evidente de evitar a tempestade que os espreitava e que não falhou. Sisto IV começou a vociferar como um simples mortal, ostentando com furiosas invectivas a voz que tinha forte, bela, poderosa e dotada de uma grande eloquência. Arquitecto e trabalhadores viram-se em breve de joelhos na poeira e curvando humildemente as cabeças à espera que a borrasca passasse. Mas até um Papa tinha de recuperar o fôlego de vez em quando.