Jovem, morena... e creio que se pode dizer que é muito bela. Pelo menos, seria se não tivesse um ar tão cansado.
Quem diria? murmurou Bórgia entredentes. Agora brincas aos alcoviteiros, monsenhor? Onde a desencantaste, essa?
Desdenhando responder, Patrizi fez o gesto de afastar uma mosca inoportuna e avançou para o Papa, que coxeava ligeiramente na sua direcção.
Eles que esperem na sala do Papagaio, cujas portas mandarás fechar cuidadosamente. Ah! Já me esquecia: manda prevenir o cardeal camerlengo, mas ele que venha só! Dá-me o teu braço, Rodrigo!
Bórgia fez-se tanto menos rogado quanto aquele preâmbulo o atraíra, sentindo-se cheio de curiosidade. Já que se tratava de uma mulher, e sobretudo de uma desconhecida, o apetite proverbial do belo cardeal espanhol manifestava-se. Sempre ”maravilhosamente disposto para o amor”, mantinha, para além de uma amante da qual tinha dois filhos, numerosas cortesãs que contribuíam para o prazer dos numerosos palácios que possuía na Zecca. Farejando, por outro lado, um odor de mistério porque Montesecco, o homem de mão do Papa, desaparecera do Vaticano há vários meses, teria levado Sua Santidade nos braços se Esta tivesse manifestado a intenção.
Infelizmente, para sua decepção, uma vez chegado aos seus aposentos, Sisto IV agradeceu-lhe hipocritamente a sua ajuda, deu-lhe a sua bênção e marcou encontro para o dia seguinte.
1 Cardeal da Cúria Pontifícia, que administra a Justiça e o Tesouro, preside à Câmara apostólica e governa a Igreja quando o Trono Sagrado está vago.
Dizer que Fiora estava cansada era um eufemismo. A jovem nunca conhecera antes semelhante lassitude, mesmo depois do nascimento daquele bebé em quem não ousava pensar para não aumentar o desespero, nem na vida estafante que conhecera no ano anterior ao seguir os passos do Temerário.
Durante semanas, a carraca traçara o seu difícil caminho ao longo das costas de França, de Espanha e de Portugal levada pelas tempestades do equinócio, durante as quais a prisioneira pensara morrer cem vezes. Ao passar pelas antigas colunas de Hércules, a sorte de um nevoeiro súbito livrara-os de um pirata mouro e só uma vez entrado no Mediterrâneo é que o corajoso navio conhecera um pouco de calma. Mas o Outono estava à porta e fora preciso lutar contra uma nortada furiosa que se levantara ao largo da Córsega e o atirara para a costa, felizmente suficientemente perto de Civita Vecchia para que pudesse entrar no porto, evitando, assim, o naufrágio.
Fiora passara todo esse tempo fechada na sua cabina sem ver ninguém, à excepção de Domingo, que velava por ela com uma constância que acabara por comovê-la. O negro levava-lhe de comer, lavava-lhe a roupa e até lhe contava as pequenas coisas que aconteciam a bordo do barco. Evidentemente, tratara-a do enjoo que a deixara sem forças no fundo da sua cama, desejando perdidamente que aquele navio infernal se afundasse para acabar com o seu suplício. Mas, após duas boas semanas, as náuseas tinham desaparecido e Fiora, que não pudera, durante esse tempo, meter no estômago outra coisa que não chás de menta frios e açucarados, pôde alimentar-se um pouco melhor. Os caldos de cereais e a carne seca não eram susceptíveis de lhe abrirem o apetite, mas era preciso viver. Uma curta escala que fizeram em Cádiz permitiu embarcar víveres frescos, ovos e laranjas e prosseguir a viagem sem grandes estragos. Aliás, Fiora não era a única vítima do enjoo. Montesecco sofrera dele severamente e, por isso mesmo, só visitara duas vezes a sua prisioneira. Do que ela não se queixara.
Devido ao facto de estar quotidianamente com o grande núbio, Fiora acabara por saber certas coisas acerca dele. Primeiro, gozava da confiança do Papa, apesar de ser um escravo ligado à sua casa particular. O Santo Padre apreciava a sua força, a sua sabedoria e o seu gosto pelo silêncio. Se o enviara juntamente com Montesecco, fora para ter a certeza de que a prisioneira teria uma hipótese de chegar ao seu destino sem ser molestada em demasia.
É estranho disse então a jovem. Quando me salvaste dele na barca, ele acabava de me ameaçar, dizendo que, se não lhe obedecesse em tudo, me meteria no porão e entregar-me-ia aos seus homens que eram dez, dos quais um tártaro e um negro. Há outro negro?
Não. Eu sou o único e isso foi pura fanfarronice. Queria aterrorizar-te desde logo.
Nesse caso, por que é que ele deixa que sejas tu a tratar de mim? Ele não tem medo que...
Fiora ouviu, pela primeira vez, Domingo rir. Um riso à sua medida, que fez vibrar os pequenos caixilhos da janela.
Não tenho vergonha nenhuma de confessar disse ele, então. Há dez anos, os turcos privaram-me da minha virilidade. Uma provação cruel, mas à qual devo bastantes compensações: por exemplo, ter sido oferecido ao Papa pelo senhor Ramon Zacosta, grande mestre dos cavaleiros de São João de Jerusalém. Foi ele que me baptizou com o nome de Domingo depois de enforcar, em Rodes, o pirata que me tinha cativo na sua galera com outros escravos. Então, o meu novo senhor ainda não se tinha tornado no Soberano Pontífice, mas tratou-me bem porque eu sou letrado. E eu sou-lhe totalmente devotado.
Então, sabes por que me mandou raptar? Tenho assim tanta importância para que ele envie a França um bando de malfeitores e, sobretudo, um servidor do teu valor?
Eu não sei nada, senão que ele nos prometeu ouro se te levássemos para Roma. Mas as suas ordens foram formais: não te podíamos fazer qualquer mal e, repito, Montesecco quis meter-te medo. Tu és bela e ele esperava, fazendo de ti sua amante, conseguir um golpe duplo.
Muitas vezes, durante a interminável viagem, Fiora dera a volta aos seus pensamentos sem conseguir encontrar-lhes um sentido e, por fim, acabara por renunciar. A clausura forçada alterou-lhe a saúde, se bem que Domingo abrisse a janela de manhã, à tarde e sempre que o tempo o permitia, para que o ar do mar pudesse refrescar a cabina. A alimentação aleatória e a falta de exercício, juntamente com as recordações dos que deixara para trás, faziam o resto e quando, enfim, pôde abandonar o navio, Domingo pediu que ficassem dois ou três noites no castelo papal de Civita Vecchia para que a prisioneira se recompusesse um pouco da travessia: ela tinha um aspecto assustador e o Papa não ficaria contente.
Obteve sem dificuldade esse favor, porque Montesecco e o seu bando também não estavam muito frescos. E só dois dias depois de ter desembarcado é que o núbio fez subir Fiora para a liteira com as armas papais que a devia conduzir a Roma.
A despeito da sua situação dramática, esta sentira como que um frémito de alegria ao pisar, de novo, solo italiano. Ao longo das vinte léguas que separavam do mar a antiga cidade dos Césares e mal-grado as rajadas de chuva que alagavam os campos, a jovem respirou com uma espécie de avidez o ar que soprava dos Apeninos. Aquelas nuvens, que voavam tão baixo, tinham, talvez, sobrevoado Florença, a sua Florença jamais esquecida, jamais renegada, da qual a separavam umas setenta léguas, mas a região plana que atravessavam não evocava, em nada, as doces colinas toscanas. Era uma região de pântanos glaucos, que sob o céu cinzento parecia feita de mercúrio, pequenos bosques e, de vez em quando, a silhueta imponente e negra de um grande pinheiro. Aquela região era a região da febre que regressava todos os Verões e Fiora pensou que, mesmo com sol, devia exalar uma profunda melancolia. Assim, foi com um certo alívio que viu perfilarem-se, ao longe, as formas amplas dos montes Albano. Roma, anunciada já por numerosas ruínas antigas, não estava longe.
Agora, sentada num tamborete de veludo, à janela de uma pequena antecâmara pintada com frescos e cujo chão de mármore estava, em parte, coberto por um tapete de Korassan, a jovem via, no pátio que acabava de atravessar e na verdade, sem qualquer interesse, o vaivém dos soldados armados de longas alabardas e uniformes onde sobressaíam as samarras púrpuras ou violetas e até trajes mais modestos. Um profundo sentimento de despropósito enchia-lhe o espírito. Que fazia ela ali, naquele palácio cuja sumptuosidade se dizia oferecida a Deus, mas que se dirigia, sobretudo, a um homem cujo poder, era verdade, se estendia aos limites da Cristandade. O seu destino ia depender daquele homem, do qual estava prisioneira. Nem sequer sabia porque a tinham feito percorrer um bom terço da Europa.