Montesecco ia e vinha diante dela, escavando a lã do tapete com tacões impacientes. Refeito dos seus males, tinha pressa de tocar no preço do seu feito, mas os olhares triunfantes que, de tempos a tempos, lançava sobre a sua prisioneira deixavam esta gelada. Aquele rufia não tinha qualquer interesse para ela. Tudo o que a jovem desejava era dormir, dormir até mais não, fosse ele no fundo de uma tumba no caso de o Papa a ter mandado raptar para a matar, já que lhe prestaria um serviço se lhe permitisse juntar-se aos dois homens que amara: o seu pai e Philippe.
O grande e pálido mestre-de-cerimónias, que parecia deslocar-se flutuando como uma alga na água, pôs fim à espera. O Papa esperava-os. Enquanto os conduzia na direcção da porta coberta de placas de prata cinzelada, flanqueada por dois guardas, Patrizi lançou sobre Fiora um olhar descontente:
Vós não estais em estado de ser apresentada ao Santo Padre! disse ele com desdém. Não podíeis ter feito alguma toilette antes de vir?
Ela veio como estava cortou Montesecco. As minhas ordens eram trazê-la logo que chegasse. Podes estar certo que Sua Santidade não está à espera de a ver coberta de cetim e brocados.
Quando as portas se abriram, Fiora pensou que, desde a grande tenda do Temerário, não via nada tão faustoso como aquela sala onde acabavam de a introduzir. A decoração, para além dos frescos nas paredes, do tecto em madeira dourada, dos estuques e mármores das consolas e das molduras, constava de panos de seda bordados a ouro dispostos por baixo dos quadros e, sobre o chão de mármore de uma brancura deslumbrante, numerosos tapetes orientais. Cuidadosamente alinhados, os tamboretes, as poltronas e as almofadas dispunham-se em redor da espécie de trono onde estava sentado o Sumo Pontífice. Mas assim que pousou os olhos nele, a jovem não viu mais nada. Um só olhar fora suficiente para compreender que não podia esperar dele qualquer bondade. Agachado no fundo de uma grande poltrona de veludo vermelho com pregos de ouro e ornamentado com grandes pompons, o capelo escarlate sobressaindo na brancura do seu traje, de sobrolho agressivo e olhar venenoso, parecia-se com um qualquer batráquio irritante saído de um conto fantástico. Sob a arcada rectilínea das sobrancelhas grisalhas, as pupilas tinham o reflexo surdo das águas estagnadas de um pântano, chocadeira incessante de animais viscosos.
Ide ajoelhar-vos diante do último degrau do trono! murmurou Patrizi. Em seguida, prostrai-vos.
Aquele que eu vejo é o Sumo Pontífice, ou um ídolo bárbaro? ripostou a jovem a meia-voz. Eu ajoelho-me porque o protocolo assim o exige, mas não faço mais nada.
Num passo como que por milagre singularmente firme, a jovem caminhou na direcção do trono de Pedro. Uma voz de bronze, que tinha as sonoridades de um zangão, acolheu-a a meio do caminho:
Filha da iniquidade! Como ousas aparecer perante Nós com esse passo seguro, quando devias rastejar na poeira para tentar desviar a Nossa cólera?
Ao ouvir aquilo, Fiora parou onde estava:
Ninguém me ensinou a rastejar, Muito Santo Padre e no entanto já me aconteceu achar-me diante dos tronos dos príncipes mais poderosos deste tempo. Eu sei o que devo ao Vigário de Cristo, mas sou uma dama nobre e não uma escrava acorrentada apesar do tratamento que sofro há dois meses, no maior desprezo pelos meus direitos e pelo facto de me encontrar nas terras pessoais do Rei de França. Portanto, sob a sua protecção.
Sem apressar o passo, a jovem prosseguiu o seu caminho através do arquipélago rutilante de tapetes. Então, chegada ao primeiro dos degraus, pegou numa almofada de brocado e colocou-a sob os joelhos antes de se deixar cair.
Posso saber articulou ela calmamente a que devo a honra de me ajoelhar, a esta hora, perante Vossa Santidade?
Aquela coragem e audácia tranquilas pareceram desarmar por um instante a cólera de Sisto, cólera essa artificial, aliás, sob a qual ele se esforçava por esconder a alegria que sentia por ver assim, reduzida à sua mercê, a mulher em quem ele via uma inimiga irredutível. Por um momento ele olhou para ela, descontente por ver tanta rigidez naquela forma delgada, feminina, visivelmente esgotada pela longa viagem. Sob o traje grosseiro, o corpo parecia diáfano e o rosto tinha a palidez do marfim, mas o porte continuava altivo e o Papa teve de confessar a si próprio que poucas princesas seriam capazes de manter, diante dele, aquela confiança orgulhosa.
Tu cantas muito alto para uma rapariga nascida na palha podre de uma prisão!
Esbofeteada por aquela evocação do seu infeliz nascimento, Fiora sentiu-se corar, mas não enfraqueceu:
Estou surpreendida disse ela por o soberano Pontífice saber a esse ponto a história de uma mulher que não devia ter qualquer interesse para o sucessor de São Petro. Nascida na prisão, sem dúvida, mas nobre, mesmo assim, e fui, além disso, criada por um dos maiores homens de Florença. De modo que...
Chega! Eu sei quem tu és, mulher! Por tua causa, um dos nossos melhores servidores, um santo homem, suporta um dos mais duros cativeiros numa prisão desumana...
Se é frei Inácio Ortega que Vossa Santidade canoniza assim, com tanta ligeireza, o Paraíso deve ser de acesso singularmente mais fácil do que me tinham dito. Portanto, basta matar um Rei para que se tenha acesso a ele sem mais obstáculos? Frei Inácio tentou assassinar o Rei Luís de França e, se eu consegui impedi-lo, devíeis, Muito Santo Padre, agradecer-me: o sangue dos Reis teria deixado uma mancha indelével na brancura do Cordeiro, de quem vós sois o representante...
Que história é essa? exclamou Sisto cujos grossos e nervosos dedos reduziam a fio os pompons da sua poltrona. Frei Inácio foi incumbido de obter a libertação de um príncipe da Igreja retido numa dura prisão, no desprezo pelo menor dos direitos, pelo Rei Luís. Ele não é nosso servidor, antes da Rainha Isabel de Castela, que o reclama. Além do mais, não é a primeira vez que te encontramos no nosso caminho da verdadeira fé e da honra do Cristo Rei! Já em Florença, há dois anos, causaste horror e escândalo com as tuas torpezas.
É torpeza querer defender a memória de um pai assassinado? E, se houve escândalo, fui muito menos responsável do que aqueles que, diante da criança indefesa que eu era, acumularam armadilhas e ardis. Era para glória da Rainha Isabel que frei Inácio, ligado aos Pazzi, conjurava para a perda dos Médicis?
O som das alabardas batendo nas lajes do solo cortou a sátira violenta em que Fiora estava lançada, fora de si, decidida a jogar tudo por tudo. Uma nova personagem fazia a sua entrada, uma entrada singularmente majestosa, cuja progressão ela seguiu com uma espécie de admiração. Se alguém merecia o título de Príncipe da Igreja, era aquele homem que acabava de entrar e que passava de um tapete para o outro, num restolhar de folhas mortas, o esplendor do seu traje púrpura.
Que era idoso ninguém duvidava, mas aos setenta e cinco anos, Guillaume d’Estouteville, cardeal camerlengo e arcebispo de Rouen, conservava uma juventude que muitos lhe invejavam, a começar pelo próprio Papa. Grande, magro, distinto até à ponta dos dedos das mãos que tinha admiráveis, verdadeiras mãos de prelado, era o cardeal mais rico do Sacro Colégio, e o mais faustoso. Arrancara à ruína certas igrejas e espalhara a sua riqueza por inúmeros lares miseráveis porque era, também, um homem de bem, e Roma devia-lhe isso. Quanto ao Papa, este respeitava, naquele antigo monge Beneditino saído de uma grande família normanda, o sangue real de França a avó materna do cardeal era irmã do Rei Carlos V a vasta cultura e o espírito desligado do diplomata. Dotado, ainda por cima, de uma grande eloquência e de ideias nitidamente avançadas para o seu século, Estouteville, no decurso de uma legação em França, reformara profundamente a Sorbonne e reclamara a revisão do iníquo processo de Joana d’Arc. A sua posição em Roma era suficientemente excepcional para que o próprio Papa lha invejasse.