Philippe nunca hesitava entre a vida e a honra. Além disso, o antigo merceeiro, que acabava de o engajar sob a sua bandeira contra a sua vontade, lançava-lhe um olhar de desafio.
Não. Nunca prestarei juramento de fidelidade ao Rei de França. Eu sou fiel a Madame Maria, única e verdadeira duquesa de Borgonha.
Essa recusa custar-vos-á a cabeça!
Uma hora mais tarde, Philippe era encarcerado nas prisões da casa do Singe, saindo de lá apenas, acorrentado, para ouvir a sua própria condenação à morte.
Uma semana mais tarde, a sentença ainda não tinha sido executada. Segundo o carcereiro que lhe levava as refeições, o atraso devia-se à qualidade do prisioneiro. Estava guardado para o melhor da festa, seria o atractivo do sangrento espectáculo que o senhor de Craon tencionava dar a Dijon. Furioso com as desordens cometidas durante a sua ausência, o francês vingava-se fazendo reinar o terror. Depois do seu regresso, todos os poderes, que não o seu, ficaram suspensos e os partidários do Rei puderam assistir ao castigo daqueles que se lhe tinham oposto. Acossavam-se os menores suspeitos e tanto o carrasco, como os seus ajudas, não tinham mãos a medir. Jehan du Poix, o ”carniceiro” da cidade, só parava de torturar para enforcar e decepar cabeças. Para variar o espectáculo, até foi encontrado, por acaso, um fabricante de moedas falsas, que meteram num caldeirão com azeite e água a ferver...
Decididamente, era impossível atingir os tufos de erva: as correntes que ligavam o prisioneiro à muralha eram demasiado curtas e, com um suspiro, este sentou-se na enxerga. A noite ia cair. A cidade estava estranhamente silenciosa, como se necessitasse de repousar após tanta violência. Não se ouviam gritos, vociferações, toques de sino anunciando a última hora dos condenados! Philippe pensou que não restava ninguém para matar senão ele. Nesse caso, a sua morte não devia estar longe. Seria aquela a sua última noite?
O barulho dos ferrolhos fê-lo virar a cabeça. Entrou um carcereiro transportando uma bilha de água e um pedaço de pão, mas não era o carcereiro do costume. Aquele era um homem de idade, que arrastava os pés e cuja longa barba, de um cinzento-amarelado, lhe chegava ao estômago.
Quem és tu? perguntou Philippe. É a primeira vez que te vejo.
O homem olhou-o com uns olhos sem cor definida e raiados de vermelho.
E depois? resmungou ele. O tipo que estava encarregue do subsolo partiu uma perna ao descer do telhado para onde tinha subido para ver melhor a execução. Então, foram buscar-me, mas estas escadas não são nada boas para as minhas dores. Os degraus são escorregadios e na minha idade...
Quem é que despacharam hoje? perguntou Selongey, pouco desejoso de ouvir a lista de recriminações do velhote.
O Chrétiennot Yvon. Foi preciso levá-lo para o cadafalso porque a tortura lhe desfez as pernas, mas foi um belo trabalho. Mestre Jehan du Poix despachou-o com um único golpe de machado e depois cortou-o em quatro bocados para serem pendurados nas portas da cidade. A cabeça está em Saint-Nicolas, a perna direita na porta de Ouche, a perna esquerda...
Não me interessa saber mais cortou Philippe, desgostoso e inquieto pela primeira vez, pensando que acabavam, talvez, de lhe descrever a sua própria sorte.
A morte não significa nada para um guerreiro, mas ir para o cadafalso meio morto e ser depois cortado em pedaços como carne de talho revoltava-o e deixava-o com pele-de-galinha. Queria poder olhar o carrasco nos olhos e dominar, do alto da sua estatura, a multidão que apareceria para ver o espectáculo.
Sabe-se quando será a minha vez? perguntou ele com voz firme.
O ancião encolheu os ombros e olhou para o prisioneiro com uma certa piedade.
Eu sei que não é nada agradável de ouvir, mas creio que é amanhã. Avisaram-me que esta noite vem aqui um monge para vos exortar. Ides precisar de coragem.
Se não a tivesse, não estava aqui.
O carcereiro pousou o pão e a bilha e, como um bom criado de quarto, sacudiu a coberta abandonada sobre a enxerga.
Tivestes sorte! Deram-vos o melhor quarto da casa. Esta cela foi restaurada.
Restaurada? exclamou Selongey, olhando para as paredes cheias de salitre, o tecto que o Verão borgonhês não conseguira secar e a palha meio apodrecida que cobria o chão. Deve ter sido há muito tempo!
É claro que não foi ontem, mas, aqui onde me vedes, conheci esta prisão sem mais nada senão palha. As correntes estavam velhas e ferrugentas e os ratos corriam por aqui como se estivessem em casa deles. No entanto, vi, aqui dentro, uma pobre rapariga dar à luz uma criança. Tinha cometido o pecado do incesto com o irmão e também o de adultério, mas era muito novinha, muito pequenina e partiu-me o coração vê-la torcer-se de dores durante horas.
Philippe tinha empalidecido e olhava com horror, agora, para aquela prisão que, até então, não lhe parecera diferente de outras que conhecera.
Ela chamava-se Marie de Brévailles, não é verdade? murmurou ele. E morreu cinco dias depois...
Foi isso mesmo! disse o carcereiro, espantado. Era do vosso conhecimento?
Não, mas conheci o irmão, ao serviço de monsenhor de Charolais. Foi uma triste história, com efeito.
- Bem, não foi assim tão triste, no fundo!
Como?
Eu explico-vos. Enquanto dava à luz a criança, não passava de uma pobre criatura sofredora, mas devíeis tê-la visto a caminho do cadafalso com o irmão! Como eram nobres, permitiram-lhes que se vestissem decentemente com os seus melhores trajes e estavam ambos soberbos. Antes de subir para a carroça, ele segurou-lhe na mão e sorriram um para o outro. Tinham um ar tão feliz, que pareciam que iam para um casamento. E tão belos! Toda a gente chorou ao vê-los morrer.
Mas deixaram uma criança?
Sim. Uma miúda, que foi levada para o hospício. Isso foi o mais triste, porque ela era filha do pecado, mas dizem que o bom Deus teve piedade dela. Um estrangeiro, um rico mercador, estava de passagem. Viu morrer a mãe e quis ficar com a pequena. Mas não se sabe o que lhe aconteceu...
Selongey reteve um sorriso. Perguntava a si próprio que cara faria o homenzinho se lhe dissesse que a pequena em questão era sua mulher. Mas não lhe apetecia continuar a conversar. Já que a sorte queria que ele passasse as suas últimas horas na mesma masmorra onde Fiora vivera os seus primeiros instantes, isso era, para ele, um sinal do destino. Não teria, como Jean de Brévailles, a alegria de morrer com aquela que amava e não partilharia a sua tumba, mas partiria com a imagem da sua bela florentina no coração. Tentar expulsá-la da sua mente, tal como fizera nos últimos tempos, era inútil. Não podia escapar à recordação de Fiora, aos grandes olhos de Fiora, ao sorriso de Fiora. Talvez achasse a morte mais amena se pensasse nela. No fundo, ela tivera razão em recusar a vida que lhe oferecera. Que seria dela, agora, se tivesse aceitado ir para Selongey? Uma viúva desesperada e irritada com a presença de uma cunhada tão tola como Beatrice, uma mulher que os homens de armas expulsariam como acontece muitas vezes quando se trata dos bens de um condenado? Que seria, talvez, molestada, encarcerada? Philippe odiava com todas as suas forças o Rei Luís, décimo primeiro do nome e por nada deste mundo aceitaria servi-lo, mas, naquela ocasião, mais valia que Fiora tivesse escolhido ficar perto dele e aceitar o pequeno castelo que ele lhe oferecera. Desse modo, a sua morte como rebelde não prejudicaria aquela que amava.
O carcereiro já saíra há muito, expulso pelo mutismo do prisioneiro e pela noite que começava a cair. Philippe pegou no pão que lhe tinham trazido e, depois de traçar o sinal da cruz sobre ele, arrancou um pedaço e mordeu-o. Não tinha fome, mas, sabendo o que o esperava no dia seguinte, queria abordá-lo na plena posse das suas forças. Aliás, pela primeira vez, o pão era fresco e ele mascou-o e cheirou-o com algum prazer. O odor do pão quente, saído do forno, encantara a sua infância; e continuava a ser um dos seus odores preferidos. Comeu metade, acompanhado com alguns goles de água fresca. Era melhor guardar a outra parte para a manhã seguinte. Não lhe trariam mais.