Sabia-se, claro, que ela era florentina, a única do convento, e souberam também, depois, que era viúva de um dos melhores capitães do Temerário. Mas o defunto duque de Borgonha era completamente desconhecido das freiras, com excepção de uma, que, após algumas hesitações, foi, uma manhã, ter com Fiora ao jardim.
A jovem fizera desse jardim o seu lugar de predilecção e quando o tempo o permitia instalava-se nele com um bordado, ou percorria lentamente os carreiros traçados cuidadosamente. Não tinha qualquer comparação com o da Casa das Pervincas, nem sequer com o da villa Beltrami, em Fiesole, de que Fiora tanto gostara. Este, a despeito do Inverno próximo que o privava da maior parte das suas flores, reunia, em redor de um grande pinheiro manso, um pequeno bosque de limoeiros, romãzeiras e loendros. Encerrado entre carreiros cobertos de pequenas placas de mármore que iam dar a tanques onde cantavam fontes, era uma confusão de plantas mediterrânicas das mais odoríferas, de onde saía, por vezes, uma moita de roseiras ou as longas plumas da giesta de Espanha. Evidentemente, havia uma horta sabiamente ordenada e plantada com grande rigor, protegida dos ventos por sebes de ciprestes, mas tudo o resto parecia obra de um jardineiro ao mesmo tempo genial e um pouco louco.
Sentada no banco que elegera desde o primeiro dia, com uma toalha de altar que oferecera a si mesma para bordar entre as mãos, mas na qual os seus dedos se afadigavam pouco, Fiora viu aproximar-se uma jovem religiosa. A jovem reparara nela na capela pela sua voz angélica e o seu rosto parecera-lhe vagamente familiar. Fiora sorriu-lhe para a encorajar a aproximar-se, porque a jovem era visivelmente tímida:
Desejáveis falar-me, irmã? perguntou ela.
Perturbei-vos e peço-vos perdão disse a pequena freira, corando violentamente.
Não devia estar no convento há muito tempo, porque usava, tal como Fiora, o hábito branco das noviças.
Dizei antes que me surpreendestes em flagrante delito de preguiça, porque, como vedes, sonhava. Vinde, sentai-vos neste banco!
Obrigada. Há vários dias que desejo falar-vos, mas tive que reunir toda a minha coragem. Disseram-nos, apenas, que sois uma donzela de Florença, casada com um grande senhor de Borgonha. E queria saber... Sereis, por acaso, a condessa de Selongey?
Sou disse Fiora espantada. Como descobristes?
Peço-vos, não penseis que cedo a uma vulgar curiosidade. Compreendereis melhor quando vos disser quem sou.
Sois a irmã Serafina. Gosto tanto de vos ouvir cantar, que me informei.
Sim. Aqui, chamo-me Serafina, mas lá fora chamava-me Antónia Colonna.
Uma luz brusca entrou no espírito de Fiora, ao mesmo tempo que uma lufada de alegria:
Battista! exclamou ela. Mas era nele, claro, que vós me fazíeis pensar. Sois da família dele?
- As nossas mães são irmãs e nós temos a mesma idade. Se fôssemos gémeos, não éramos mais próximos um do outro. Desde que partiu que me escreve com alguma frequência... e, por vezes, fala de vós. Creio que eram ambos amigos?
Mais do que amigos! Dizeis que ele é para vós como um irmão. É um pouco o que ele foi para mim, um irmão, cheio de atenções e gentileza. Então, eu era refém do duque de Borgonha e foi graças a Battista que não caí no desespero em determinadas circunstâncias. Mas, após os funerais do duque Carlos, ele desapareceu e eu nunca mais soube nada dele. Ides dar-me notícias dele neste momento? acrescentou ela com uma certa animação. Suponho que regressou a Roma?
Não. Ficou lá!
A irmã Serafina desviou o olhar para que a sua companheira não lhe visse as lágrimas e em Fiora a alegria deu lugar à inquietação.
Ficou em Nancy? Mas porquê? Ele não foi ferido na última batalha que custou a vida ao duque e eu ouvi dizer que, devido à sua idade, não ficaria como prisioneiro!
Com efeito, ele podia ter regressado. Se ficou lá, foi por vontade própria. Pediu para ser admitido entre os monges encarregados de velar pelo túmulo onde está sepultado aquele a quem ele chamava o grande duque do Ocidente. Nunca mais voltará!
Desta vez, Serafina chorou sem procurar esconder-se e Fiora, incomodada, não soube como apaziguar, ou, pelo menos, adoçar a sua dor. Ao mesmo tempo, reprovava-se a si própria: reencontrado o seu amor, nunca mais pensara no pajem e deixara Nancy sem tentar vê-lo de novo. Mas a conduta de Battista não era menos incompreensível. Amava tanto o duque a ponto de querer ser seu servidor eterno? A ponto de enterrar com ele todas as esperanças a que tinha direito na vida? Querer ficar junto do túmulo? Que coisa absurda! Que acontecera, portanto, no lago Saint-Jean, aonde Battista guiara aqueles que procuravam o corpo do vencido? Que perturbação operara a descoberta do cadáver meio comido pelos lobos, na alma daquele rapaz que sonhava com a glória, que amava a vida e que, jovem, belo, rico e príncipe, não desejava mais nada? A não ser, talvez, o amor... um amor que só esperava por ele e que nunca ousara dizer o seu nome. Entretanto, Serafina continuou:
Ninguém, entre nós, compreendeu a sua decisão e menos ainda o nosso tio, o conde de Celano, com quem Battista tinha partido para se juntar aos exércitos de Borgonha. Ele tentou tudo para o trazer de volta, mas teve de defrontar uma vontade terrível, irredutível. Battista queria ser monge.
Que coisa insensata! Mas, enfim, pode-se entrar, assim, na religião sem o consentimento do chefe de família? O pai dele autorizou-o?
De maneira nenhuma. Ele alimentava grandes esperanças por Battista.
Nesse caso, por que não apelou ao Papa? Eu sei que vós sois uma das famílias mais poderosas de Roma.
Fomos, mas já não somos. Os Orsini é que são os mais poderosos, porque o príncipe Virgínio é amigo íntimo do conde Girolamo Riario, o preferido entre os quinze sobrinhos do Santo Padre. Evidentemente, não renunciámos à guerra contra essa família de feirantes, mas, neste momento, os riscos e os perigos são nossos.
Quinze sobrinhos? Que família! E tudo homens?
Não. Também há raparigas e casam-nas bem. Quanto aos rapazes, se não são cardeais, desemburram-nos para fazer deles verdadeiros senhores. O ”conde” Girolamo, que casou com a bastarda preferida do duque de Milão, conseguiu a Romanha e espreita Florença. Um outro é prefeito de Roma, o cardeal Gíuliano della Rovere é bispo de Lausana, de Avinhão, de Constança, de Mende, de Savone, de Viviers e de Vercelli. O seu palácio del Vaso, que nos tiraram, está cheio de objectos raros, de artistas, de eruditos e de poetas, porque ele interessa-se muito mais pelo pensamento grego, ou romano, do que pelos Evangelhos. Um outro, defeituoso fisicamente, casou com uma filha do futuro Papa Júlio II, que mandará Miguel Ângelo decorar a capela Sistina natural do Rei de Nápoles, que foi forçada a esse casamento, tal como Catarina Sforza. Não vos posso dizer tudo, mas dentro de pouco tempo o jovem Rafael Riario, que tem dezassete anos e estuda em Pisa, receberá o chapéu de cardeal por São Jorge, em Velabro, e esta não é, certamente, a última benesse que o Papa concede à sua família. Roma, e até a Itália inteira, não passam, para ele, de um imenso jardim, no qual pilha os frutos mais suculentos para os oferecer aos seus, ao mesmo tempo que espolia os que lhe desagradam.