No entanto, mal o serviço terminou, pegou numa manta preta e quis descer ao jardim para ter a certeza. Tinha reparado no local exacto do muro por onde seria necessário lançar o sinal branco e segui-lo chegada a noite. Havia ali um velho pé de glicínia que devia ter conhecido a sua infância no tempo dos Guelfos e dos Gibelinos e que se agarrara firmemente às pedras do muro com os seus ramos cinzentos e nodosos. Graças a ela, a transposição do obstáculo far-se-ia com relativa facilidade. Mas, no momento em que se dirigia para os canteiros, a madre Girolama foi ter com ela.
Tendes intenção de descer ao jardim com este tempo?
Por que não, minha mãe? Não passa de uma tempestade e eu preciso de respirar outra coisa para além do fumo das velas.
Não respirastes o suficiente no cemitério de onde vimos? Pela minha parte, estava com dificuldade em me manter de pé! Mas a questão não é essa. Sois chamada ao parlatório.
Eu? É outra vez... o cardeal Bórgia?
O cardeal não ficaria no parlatório. Ele tem todo o direito de transpor a clausura. É de uma dama que se trata e ela mostrou uma autorização para vos falar que tem o selo privado de Sua Santidade.
Eu não conheço ninguém aqui. Quem é?
Ela deu o nome de Boscoli e eu não vos sei dizer mais nada, senão que está de grande luto. Uma viúva, provavelmente.
Boscoli? disse Fiora, reflectindo em voz alta. O nome não me diz nada. Sabeis mais qualquer coisa sobre essa dama?
Não vos posso responder, Dona Fiora. De qualquer maneira, não arriscais nada falando com ela. Quereis que vos acompanhe?
É muita bondade vossa, mas talvez seja melhor ir sozinha.
Nesse caso, sobretudo, lembrai-vos das boas resoluções que monsenhor vice-chanceler obteve de vós e guardai na memória que essa dama é, de certo modo, uma enviada do nosso Muito Santo Padre.
Tentarei lembrar-me, Reverenda Madre.
Fiora pensou que tudo dependia do que a dama em questão lhe ia dizer, mas que fosse uma enviada de Sisto IV só fazia
Nome de dois partidos poderosos que dividiram a Itália do século xii ao século xv. Os primeiros eram partidários dos papas, os segundos, dos imperadores da Alemanha. As suas lutas ensanguentaram as cidades da Península e prolongaram-se até à invasão francesa de 1494.
aumentar a sua desconfiança. Sem se dar ao trabalho de tirar a capa negra, a jovem dirigiu-se para o parlatório do convento.
Este era uma grande sala em pleno arco abobadado, caiada e dividida ao meio por uma espessa grade de ferro. Do lado do claustro, o único ornamento era um crucifixo de bronze, mas do lado dos visitantes uns frescos altos, coloridos, retratavam o martírio do bem-aventurado Sisto II, decapitado no ano 258 com quatro dos seus diáconos no cemitério de Calisto. O artista pintara o santo maior do que as outras personagens para mostrar a que ponto lhes era superior.
Ao abrir a porta, que teve o bom gosto de não ranger, Fiora viu apenas uma silhueta negra, de formas amplas, que lhe virava as costas. A visitante estava em contemplação diante da cena em que um carrasco musculoso decapitava a cabeça aureolada de ouro do mártir. E Fiora, pela primeira vez, abençoou as horríveis sandálias de corda trançada que calçava no convento, nas quais os seus pés nunca estavam quentes, porque lhe permitiam avançar até à grade sem fazer mais barulho do que um gato. A jovem desejava observar a visitante, mas não viu grande coisa para além de um amplo manto de um bom tecido negro de ramagens prateadas e cujo capuz estava orlado de pele de raposa escura. E como lhe era impossível saber mais, decidiu-se:
Posso saber, Madonna, a que devo a honra da vossa visita? disse ela com voz clara.
A mulher levou o seu tempo para se virar, mas, quando o fez, Fiora teve de fazer apelo a toda a sua vontade para não lançar um grito que talvez a outra esperasse. Aquela que a olhava com um sorriso de desdém e uns olhos brilhantes de alegria maldosa não era outra senão Hieronyma...
CAPÍTULO VII
O ESCRIBA REPUBLICANO
A despeito da separação a que a grade a impunha, Fiora recuou instintivamente um passo, como teria feito se lhe tivesse aparecido uma serpente no caminho, mas o seu rosto permaneceu perfeitamente impassível. Pelo contrário, Hieronyma aproximou-se da clausura até tocar nas grades com a sua mão enluvada de negro.
Bom dia, prima! disse ela com uma voz chiante que Fiora não lhe conhecia e que era devida, sem dúvida, aos dois dentes que lhe faltavam no maxilar superior. Levou tempo a encontrarmo-nos de novo, mas espero que aprecies as circunstâncias presentes no seu justo valor?
Anunciaram-me uma senhora Boscoli! Que comédia é esta?
Comédia? De maneira nenhuma: é esse o meu nome. Há pouco mais de um ano casei aqui mesmo com o senhor Bernardo Boscoli, um jurista da corte pontifícia. Infelizmente, tive a infelicidade de o perder o Verão passado... a peste!
Com a ponta de um dedo, ela esmagou uma lágrima fictícia, ao mesmo tempo que Fiora oferecia a si mesma o luxo de um sorriso carregado de desdém:
Isso não é nada lisonjeiro da tua parte: escolher a peste após alguns meses, apenas, de casamento! Mas é, pelo menos, uma atitude que eu posso compreender. E agora, diz-me o que vens fazer aqui e vai-te embora!
O rosto de Hieronyma, que ainda não tinha perdido o brilho da sua maturidade maravilhosa, ficou púrpura sob o impulso de uma cólera brutal que fez brilhar os seus olhos negros e depois amareleceu de uma vez só, como se o fel que lhe enchia a alma acabasse de se infiltrar sob a sua pele loura. Ela engordara durante aqueles dois anos, mas adquirira uma espécie de majestade perversa que lhe ia muito bem e Fiora pensou que a Górgona da lenda devia parecer-se com ela. Retomando o fôlego que a insolência da sua inimiga lhe cortara por um momento, pareceu inchar ainda mais.
Baixa o tom, minha filha! Tu não estás aqui em posição de dar ordens sibilou ela. De facto, já não és grande coisa e basta um piparote para te mandar de novo para o sítio de onde vieste, para a palha de uma prisão, para o cadafalso.
O gosto amargo do ódio invadiu Fiora e encheu-lhe a boca. Aquela mulher miserável, que tinha assassinado o seu pai, destruído a sua vida, que ousava prostituir o seu corpo ao serviço de Satã e que escapara por milagre à justiça dos Médícis, ousava ir ali desprezá-la e insultá-la. Sem a grade, talvez se tivesse atirado sobre ela para a estrangular com as suas próprias mãos e livrar, por fim, o mundo de uma criatura imunda. Um violento esforço de vontade salvou-a das manifestações de uma cólera que teria dado, talvez, prazer a Hieronyma. Mais direita do que nunca, apontou-lhe um dedo e deixou cair:
Eu sou infinitamente mais do que tu nunca serás, apoiante do demónio. E já te escutei o suficiente!
Girando nos calcanhares, a jovem virou as costas à grade e dirigiu-se calmamente para a porta do parlatório. Um grito de Hieronyma reteve-a:
Espera! Eu ainda não disse tudo!
O que tu podes dizer não me interessa.
A sério? Tu, que não quiseste ser minha nora, gostarias, talvez, de saber que vais ser minha sobrinha?
O quê?
O grito de Fiora ecoou no silêncio. Com as mãos enfiadas nas mangas forradas de pele de raposa, Hieronyma olhava para a sua adversária por baixo, como se procurasse o local sensível onde poderia ferir, e mordia nervosamente o lábio inferior. Escondida por trás das peles como um animal maldoso no fundo do