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Quanto tempo ficou ela assim, de olhos muito abertos para as trevas do seu quarto, escutando o vento a rugir na galeria e a fazer ranger os ramos das árvores? Seria impossível de avaliar, mas, de qualquer modo, não fecharia os olhos antes do regresso do dia... E então, de repente, ouviu-se junto à porta um ligeiro ruído e uma forma negra, mais negra ainda do que a escuridão, deslizou até junto do leito:

Estais pronta? sussurrou a irmã Serafina. Instantaneamente, Fiora pôs-se de pé:

Como fizestes para entrar? Alguém fechou a minha porta e eu ouvi a chave na fechadura.

Foi, sem dúvida, a nossa madre Girolama. A dama Boscoli deve ter tomado as suas precauções, mas, felizmente, esqueceram-se de tirar a chave. E agora vinde, mas primeiro envolvei-vos no vosso manto. É preciso ficar tão invisível quanto possível.

Ela própria se fundia por completo na noite e, sem a segurança tranquilizadora da sua mão, Fiora poderia pensar que falava com um fantasma. Uma atrás da outra, saíram ambas para a galeria e depois mergulharam na tempestade e no jardim. Fiora teve a impressão de mergulhar numa floresta submarina. Não havia um ramo, uma folha que estivesse imóvel e que não sacudisse a sua carga de água.

Não vejo nada! murmurou ela, cega por uma bofetada molhada que lhe atingiu o rosto em cheio.

Não tenhais medo, eu conheço o caminho de cor. Sou capaz de vos levar até ao muro de olhos fechados.

Pela minha parte, quer estejam abertos, ou fechados, a diferença é igual. Que noite!

Não vos preocupeis! Os guardas do convento estão abrigados onde podem e no pântano não deve haver nem um gato. Vede, estamos a chegar!

Pouco a pouco, Fiora foi vendo e, por fim, distinguiu, mesmo à sua frente, uma massa mais negra ainda, que era o muro coberto de plantas. A irmã Serafina guiou a mão que segurava até que esta se fechou sobre um ramo espesso:

Eis a glicínia. Trepai! Quando estiverdes no alto, assobiai! Ou me engano muito ou aquele que vos espera está mesmo junto do muro... Que Deus vos guarde!

Às apalpadelas, Fiora procurou a cabeça da noviça e beijou-a.

Por que não vindes comigo? Tenho medo que fiqueis em perigo quando se aperceberem da minha fuga.

Não tenhais. Mesmo que a madre Girolama duvide de qualquer coisa, não dirá uma palavra.. Ela gosta muito de mim, ao mesmo tempo que detesta o Papa, a sua tribo e os seus amigos. Estou certa que no fundo do seu coração ficará contente com o seu fracasso.

Mas, ela fechou-me na minha cela?

Simples descargo de consciência. Ela deixou a chave na porta. Quando virdes Battista, abraçai-o pela prima Antónia e dizei-lhe...

Confiai em mím. Sei exactamente o que lhe vou dizer. Com decisão, Fiora empunhou uma braçada de ramos a escorrer água e começou a trepar para o topo do muro. Chegou lá acima sem grande dificuldade, mas foi preciso agarrar-se com força para não ser levada pelo vento que batia como um chicote. Então, ouviu uma voz:

Não assobieis! Estou aqui! Ouvi-vos chegar. Descei suavemente para não desequilibrar a barca.

Ela passou para o outro lado do muro e apalpou com os pés para encontrar apoio. Aquela descida pareceu-lhe durar uma infinidade de tempo. Subitamente, uma mão fechou-se sobre uma das suas pernas e depois sobre as duas.

Já vos tenho segura. Deixai-vos cair!

Ela deslizou, mas as mãos em questão já lhe apertavam a cintura e ela viu-se sobre um soalho movediço, que só podia ser o da barca. O homem segurava-a contra si com firmeza e, para sua grande surpresa, a jovem respirou um delicado perfume de âmbar. No entanto, o que ela tocava era um tecido rude, um burel qualquer e, aliás, a grande silhueta que ela mal distinguia era a de um monge.

Peço-vos perdão por estes dias de espera disse ela docemente. Este tempo abominável...

Chhh! Falaremos mais tarde. Sentai-vos ali e não vos mexais!

Ele instalou-a no fundo do esquife e depois, empunhando uma longa vara, mergulhou-a na água lodosa e dirigiu-se para a margem. Mas quando ele disse as últimas palavras, quase com naturalidade, Fiora identificou ao mesmo tempo a voz e o perfume. A jovem não foi capaz de guardar para si a descoberta:

Como, monsenhor? Viestes vós mesmo? Fostes vós que esperastes estes dias todos?

Ela ouviu-o rir suavemente:

Não. A minha ausência teria sido notada no Vaticano. Simplesmente, o meu servidor tinha ordens para me prevenir quando fizésseis o sinal. Mas, agora, calemo-nos! Este pântano passa por ser assombrado, mas dois fantasmas a conversarem assim animadamente, como numa sala, pode levantar suspeitas.

Fiora guardou silêncio enquanto o seu companheiro se consagrava à navegação que o vento não facilitava e que se tornou ainda mais difícil quando abandonaram o abrigo do muro. A barca deslizou lentamente sobre a água espessa e, por vezes, atravessava maciços de caniços, pelos quais roçava. Apesar do frio, o odor a lodo e vegetais apodrecidos era penoso e, no seu manto ensopado, Fiora tremia. Mas não só porque se sentia molhada. Um pouco de medo aumentava o seu mal-estar por se sentir assim entregue por completo a um homem em quem não confiava totalmente. Que a tivesse ido buscar era incrível e não se explicava de modo racional. A menos que esperasse um pagamento que a jovem não se sentia disposta a dar-lhe...

O pequeno barco entrou uma última vez nos caniços, bateu em qualquer coisa dura e parou.

Conseguiste, monsenhor? disse uma voz em espanhol.

Consegui. Vai buscar os cavalos e depois, quando tivermos partido, afunda a barca.

Os cavalos estavam abrigados na casa em ruínas que a irmã Serafina assinalara a Fiora. Bórgia pegou em Fiora pela cintura e içou-a para um deles, porque a jovem estava demasiado transida para montar sozinha e depois saltou para o seu com uma ligeireza que traía uma longa habituação. Então, ele inclinou-se e pegou na brida de Fiora:

Eu vou guiar-vos. Temos bastante caminho a percorrer e infelizmente não podemos ir muito depressa, porque temos de passar por ruas que são verdadeiros charcos. Agarrai-vos bem... e tentai não bater tanto os dentes! Tendes frio a esse ponto?

Estou gelada!

Não penseis nisso! Quando chegarmos, encontrareis tudo o que for preciso para vos reconfortar. Mantende o vosso espírito fixo lá em cima! Tudo é preferível a casar com Cario Pazzi!

Daquela viagem, que a fez atravessar de norte a sul uma Roma nocturna batida por uma chuva diluviana, Fiora guardaria a recordação de uma espécie de pesadelo. O seu companheiro arrastou-a por um túnel negro e sem fim, de onde surgiam, por vezes, fustes de colunas esbranquiçadas, paredes arruinadas, um coto de vela vermelho balançando à porta de uma taverna e, por vezes, as pedras enormes e cinzentas de um palácio à porta do qual a resina dos potes de fogo não passava de brasas privadas de chama. Ouviam-se os ecos de uma festa, o som dos alaúdes e dos tamborins atravessar essas muralhas ou ainda, no exterior de um cabaré, os berros dos bêbedos e as canções acerca da bebida, mas a maior parte do tempo cavalgaram por uma cidade silenciosa como um cemitério. E Fiora tinha cada vez mais frio.

O ataque aconteceu quando estavam a chegar ao Corso. Saídos das sombras densas do palácio de San Marco construído em tempos pelo cardeal Barbo, uns homens atiraram-se à cabeça dos cavalos e arrancaram deles os cavaleiros, que rolaram por terra. Aquilo foi tão súbito que Fiora, meio atordoada, não teve tempo de ter medo, mas já Bórgia se levantava com uma ligeireza inesperada num homem com a sua corpulência e, blasfemando com uma exuberância que honrava o vocabulário de um príncipe da Igreja, apunhalou o mais próximo dos seus assaltantes. Uma lâmina brilhou na sua mão e ouviu-se um grito de dor. Mas dois dos outros bandidos, que estavam ocupados a segurar os cavalos, lançaram-se sobre ele. Fiora, corajosamente, levantava-se já para tentar ajudar o seu companheiro, atirando-se às costas de um dos agressores, quando uma voz seca estalou: