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Parem ou largo os meus cães!

1 Que foi o Papa Paulo II. O seu palácio é hoje o palácio Veneza, que Mussolini tornou célebre.

Uns latidos furiosos sublinharam aquelas palavras e à luz da lanterna que segurava numa mão, viram ambos um homem que devia ter trinta e cinco anos, todo vestido de negro e com um grande capuz sem ornamentos enfiado até aos olhos. Na ponta de uma trela dupla enrolada em redor do seu punho esquerdo, dois grandes cães, tão negros como o dono, rosnavam mostrando os dentes impressionantes. Já os ladrões saltavam para os cavalos e fugiam sem mais palavras, abandonando sem hesitar o companheiro que arquejava numa poça de lama.

O recém-chegado aproximou-se dele e virou-o com a bota.

Não dura muito mais tempo constatou ele. Aliás, os homens de Soldan passam daqui a pouco. Eles encarregam-se dele.

A luz que ele erguia para examinar o moribundo desenhava um perfil acerado de ave de rapina, olhos profundamente enterrados no arco espesso das sobrancelhas e uma boca delgada e sarcástica. Endireitando-se, o homem atou os seus cães a um anel de ferro engastado na parede de uma casa vizinha, aproximou-se depois daqueles que acabava de socorrer e ergueu a lanterna para melhor os ver. A luz apanhou primeiro o vestido branco, evidentemente monástico de Fiora, antes de passar ao hábito castanho com que o seu companheiro estava vestido.

Uma freira!... e um monge! Que fazem a esta hora pelas ruas de Roma, meus amigos? Foge-se do convento, onde a vida, talvez, não tem alegria, para irem fornicar?

Salvastes-nos, estamos-vos agradecidos disse a voz autoritária de Bórgia. Não retireis mérito ao vosso feito insultando-nos! Tomai isto!

O ouro que subitamente brilhou na palma da sua mão arrancou um sorriso ao recém-chegado, que fez erguer a lanterna até ao rosto que o homem devia ter reconhecido.

Ah! Parece que me enganei: temos aqui um cardeal! Guardai o vosso ouro, monsenhor, sinto-me bem pago pela satisfação de ter trazido socorro ao meu próximo.

Quem sois? Parece-me que já vos vi?

Funcionário encarregado da polícia

O homem pareceu ficar ainda maior tanto se endireitou, e foi com orgulho que lançou:

O meu nome é Stefano Infessura, jurista, escriba, republicano e homem livre!

O Infessura! Eu conheço-vos! O inimigo da Igreja, do Papa e de toda a autoridade.

Não de todo, pois sou inimigo da desordem e, se sou amigo da liberdade, não é, certamente, a que vivemos nesta época: a liberdade de matar, de oprimir, de degolar gentes nas esquinas das ruas, a liberdade de transformar Roma num lugar perigoso, a vossa liberdade e a dos como vós. A minha não é a que vos permite a vós, príncipe da Igreja, raptar durante a noite uma religiosa, Evidentemente, ela é belíssima!

Eu não sou religiosa protestou Fiora cujo rosto, naquele momento, ficou iluminado pela lanterna. Sou uma prisioneira que se evade. E agora deixai-nos prosseguir o nosso caminho porque, se for apanhada, serei morta!

Ah!

A lanterna não baixou. O homem perscrutou os grandes olhos cinzentos que o olhavam com severidade, como se procurasse penetrar a verdade. E estes também não baixaram.

Quem te ameaça?

A curiosidade daquele desconhecido não chocou Fiora. Algo lhe dizia que podia confiar nele e, apesar da mão que Bórgia lhe pousava no braço para a incitar à prudência, ela respondeu:

O Papa e alguns do seu séquito, dos quais o cardeal Bórgia tenta proteger-me. Ouve. Já perdemos muito tempo...

O passo ferrado de um destacamento fazia ressoar, de facto, os ecos da noite. A milícia do Soldan a ronda romana não era lá grande coisa se se pensasse no número de mortes que se perpetravam quotidianamente, mas era preciso, contudo, contar com ela quando aparecia, se não se queria ir parar ao calabouço da Torre di Nona, que estava sob a sua jurisdição.

Não estão longe disse Bórgia e nós já não temos cavalos. É preciso caminhar e depressa.

Eu acompanho-vos declarou Infessura, indo libertar os cães. Ainda resta um lugar perigoso, perto das ruínas da coluna de Marco Aurélio. Zeus e Hera podem ser-vos úteis.

O escriba republicano, a sua lanterna e os seus molossos tomaram a dianteira. Solidamente segura pelo braço do cardeal, Fiora seguia o melhor que podia, se bem que o Corso fosse a maior via de Roma e o seu solo, onde alternavam as lajes antigas e um empedrado mal acabado, tinha muitos obstáculos para o peão que se aventurava nele de noite. A chuva desaparecera, como que por magia, com os malandrins, mas as goteiras substituíram-na com vantagem. Passaram sem estorvos o local delicado e, como a rua alargasse mais, puderam caminhar de frente.

Será indiscreto perguntou Bórgia ao seu companheiro perguntar-te o que fazes nas ruas à noite e com um tempo destes?

Não. Há três razões para isso: gosto de Roma, gosto de saber o que se passa nela quando as pessoas estão a dormir e gosto da noite. Durmo pouco e o dia é contrário ao meu feitio. Emprego-o a estudar e a escrever tudo o que aprendi.

Isso quer dizer que contarás no teu ”diário” o nosso encontro?

Eu escrevo para aqueles que virão depois de mim, não para os esbirros do Vaticano. O teu nome não será mencionado... e não conheço o dessa jovem. Só me interessa uma coisa: ela é uma vítima e, como tal, tem todo o direito à minha ajuda. Se me mentiram, o caso é entre vós e o vosso Deus.

Não temos razão nenhuma para mentir cortou Fiora.

Só tenho pena de não te poder agradecer.

Sorri para mim apenas uma vez e sentir-me-ei pago! Estavam a chegar ao seu destino, quer dizer, diante do menos convencional dos palácios romanos. Alguns anos antes, de facto, o cardeal Bórgia comprara, por dois mil florins de ouro, uma enfiada de velhas casas que tinham servido a Casa da Moeda e às quais chamavam, como consequência, a Zecca. Essas casas tinham, aos seus olhos, a vantagem de estarem suficientemente longe do Vaticano, porque se situavam na rua que, na outra margem do Tibre, ia do castelo de Saint-Ange à praça principal do bairro dos estrangeiros. Daquele conjunto um pouco disparatado,

Hoje praça de Espanha

a fortuna do vice-chanceler fizera uma residência de uma grande riqueza ornamental, que o povo romano não cessava de admirar desde que a descobrira, em 1462, por ocasião da grande procissão que conduzia a São Pedro a urna contendo o crânio de Santo André trazida da Grécia pelo déspota Morée. Com um certo segundo sentido e na esperança de que um dia ou outro o cardeal Bórgia se tornaria Papa, porque o costume dizia que o palácio do Eleito seria entregue, então, à multidão, que se enrolaria nele, deliciada, na mais alegre das pilhagens.

Bórgia bateu de uma certa maneira a uma pequena porta situada ao lado do grande portão e a dita abriu-se instantaneamente, libertando um rio de luz que se estendeu pela rua lamacenta. Ele quis fazer entrar Fiora, mas esta ainda não tinha acabado com o seu salvador:

Não esquecerei o teu nome disse ela calorosamente e espero voltar a ver-te, um dia.

Por que não vens sentar-te à minha mesa um dia destes?

propôs Bórgia. Tu és menos selvagem do que pretendes e eu sei que frequentas certas casas.

Nesse caso, esquece-as, porque pertencem a gente que tem, teve, ou terá contas a ajustar com o Vaticano. O Infessura em casa do vice-chanceler da Igreja? Talvez te tornasses suspeito, mas eu sê-lo-ia de certeza, pelo menos aos meus próprios olhos.

No entanto, guarda na memória, homem livre, que esta casa é um lugar de asilo. Podes precisar um dia.

Guarda isso na tua própria memória, monsenhor! Espero que a tua casa seja um verdadeiro refúgio para a tua jovem companheira... e mais nada do que isso! Quanto a mim, se o Papa decidir, um dia, suprimir-me, não virei ter contigo, saberei, em vez disso, morrer como romano. A morte de Petrónio sempre me seduziu, apesar de ele não ter nada de republicano! Que os deuses te guardem, jovem!