Talvez gostasses de dar um nome ao meu rosto disse esta vivamente. O meu é Fiora.
1 (Caio), escritor latino, favorito de Nero, escreveu o Satyricon. Comprometido numa conspiração, abriu as próprias veias em 65.
Obrigado por mo dizeres, mas dentro de poucas horas saberei tudo acerca de ti. Seja qual for o lugar de onde fugiste, as vozes da rua dir-mo-ão...
O homem fundiu-se na noite com os seus cães, ao mesmo tempo que Fiora se deixava levar, por fim, para o interior do palácio, mas não sem uma certa pena. Aquele homem ”livre” não se parecia com nenhum outro.
A casa de Rodrigo Bórgia, também ela, não se parecia com nenhuma outra e Fiora acreditou que estava a entrar num daqueles fabulosos palácios do Oriente, descritos pelo viajante veneziano Marco Pólo e por outros contadores mais recentes que encontrara em casa do seu pai, que se tinham aproximado dos faustos turcos do Sultão. Da sua Espanha natal, marcada pelo esplendor dos reis mouros, o cardeal trouxera o gosto dos pavimentos preciosos, dos tectos esculpidos, dourados e pintados como evangeliários, com cores resplandecentes. As suas armas um touro dourado sobre um campo cor-de-rosa encimadas pelo chapéu cardinalício, roçavam a parte de cima das portas e o couro das cadeiras. Os tapetes preciosos estavam por toda a parte, as almofadas enormes, as tapeçarias de brocado, as camas mortuárias forradas com os mais ricos tecidos. A baixela de ouro, de prata ou de cobre, os jarros e as taças enriquecidas de pedrarias sobrecarregavam os aparadores e as credencias ao ponto de cansar o olhar. E Fiora, que pudera contemplar à vontade o fausto guerreiro do Temerário e o seu esplendor pleno de majestade, acabou por achar que aquele palácio, tão afastado da elegância florentina, dava ao seu proprietário um pouco o ar de novo-rico.
De facto, no momento da sua chegada, Fiora não viu grande coisa de todas aquelas magnificências. Entreviu, apenas, um universo púrpura e dourado, onde fazia um calor delicioso e onde uma mulher grande, de tez amarelada, a despojou das suas roupas húmidas e maculadas de lama e a envolveu num lençol um pouco áspero, com o qual a esfregou vigorosamente até que a jovem cessou de bater os dentes. Em seguida, transportando-a nos braços como um bebé, levou-a para uma grande cama tão macia que a jovem teve a impressão de mergulhar num mar de penas, cobriu-a com lençóis de seda, fê-la beber um chá que se mantinha quente junto da chaminé, acendeu a vela dourada de vigia na cabeceira, apagou as outras velas e abandonou o quarto sem fazer o menor ruído. Já Fiora adormecia e navegava a todo o pano para o último refúgio dos infelizes: para o país do sonho.
Quando regressou, a meio do dia, encontrou uma realidade amarga, porque não se sentia nada bem: uns arrepios percorriam-lhe a espinha, a garganta doía-lhe e espirrou uma meia dúzia de vezes, o que atraiu para junto dela a mulher que vira na véspera e que acabara por acreditar integrada nos seus sonhos. Além disso, tinha uma enxaqueca.
Uma mão fresca pousou-se na sua testa e a mulher disse com um tom descontente:
Era o que eu temia! Apanhaste frio apesar dos meus cuidados e tens febre. Rodrigo não vai ficar nada contente!
Como é que ele está? perguntou Fiora cuja frase terminou com mais um espirro.
Está óptimo, como sempre. Umas gotas de água não alteram a sua soberba saúde. Ele possui a força do touro das nossas armas! acrescentou a mulher com uma súbita exaltação que surpreendeu Fiora.
Aquela criatura, aliás, era suficientemente surpreendente para que Fiora se interessasse por ela apesar do seu estado algo brumoso. Grande e talvez tão forte como Bórgia, mas ossuda, tinha uma longa figura cor de azeitona que não combinava muito bem com o seu vestido negro de aia espanhola, apenas suavizado pelo folho branco que se lhe fechava no pescoço alto com um belo alfinete de ouro e pérolas. Um véu negro estava preso nos seus cabelos penteados em redondo. Por fim, um molho de chaves pendia-lhe de um cinto de couro.
Gostaria de lhe agradecer disse ainda Fiora. Achais que terei ocasião para isso, hoje?
Ele disse-me que viria ver-te esta noite disse a mulher num tom descontente. Até ordenou que preparasse o jantar neste quarto e vai ficar muito desiludido por te encontrar nesse estado.
Depois da noite que passei, não é nada de espantoso. Além disso, eu não estou ”neste estado”. Estou muito constipada e espero, dentro de dois ou três dias, já estar boa.
Tu não o conheces. Ele tem horror à doença e aos doentes. E olha para ti! acrescentou ela, segurando na mão um espelho: Tens o nariz vermelho, o rosto inflamado... Não estás nada apresentável.
Bem, não me apresenteis! grunhiu Fiora, que começava a ficar aborrecida com aquela mulher e que, além disso, detestava que a tratassem por tu. Dizei a Sua Eminência o que se passa quando ele vier e suplicai-lhe que me conceda alguns dias para poder estar... apresentável.
Veremos! Por agora, é preciso fazer todos os possíveis para te curar.
A mulher pôs mãos à obra nesse mesmo momento e tratou de afogar a sua doente em chás, mel e leite com ovo, fê-la ingurgitar pílulas à força, obrigou-a a fazer duas fumigações, das quais a infeliz emergiu mais vermelha do que nunca e pretendeu, mesmo, administrar-lhe um clister, o qual Fiora recusou com as suas últimas energias. A jovem ignorava como estava a sua febre, mas sentia-se completamente embrutecida e, pior ainda, tinha náuseas.
Deixai-me em paz! gritou ela. Ainda me matais com tantos remédios, porque, ficai a saber, nunca os tomo!
Quando estamos doentes, tratamo-nos! ganiu a outra. Tens de beber este xarope próprio para adoçar a garganta e...
Não vou beber mais nada! A única coisa de que preciso é que me deixem dormir em paz!
Empunhando lençóis e cobertores, a jovem dispunha-se a desaparecer por baixo deles quando a entrada do cardeal pôs fim à cena. Fiora não o reconheceu de imediato. De facto, ele trazia um elegante gibão curto de veludo negro bordado a ouro, calções coleantes que prestavam justiça às pernas que tinha belas e, sobretudo, vinha de cabeça descoberta, o que lhe permitiu constatar que começava a perder cabelo.
Ao descobrir as duas mulheres frente-a-frente como dois galos furiosos, uma vermelha, desgrenhada e agarrada aos lençóis e a outra brandindo um frasco e uma colher, ele desatou a rir.
Não podíeis gritar menos alto? disse ele retomando o fôlego. Ouve-se a vossa voz no outro lado da galeria. Gostaria que, pelo menos, durante alguns dias, a presença de dona Fiora em minha casa permanecesse ignorada da maior parte dos domésticos.
Brandindo sempre o frasco e a colher, a aia avançou para ele como se pretendesse rachá-lo ao meio.
Esta rapariga está doente, Rodrigo. Não podes jantar com isto! Olha para ela! Está de meter medo! Fiz tudo o que podia para a tratar, mas ela quer impedir-me.
O que eu quero é que essa mulher pare de me envenenar com as suas drogas. Mas ela não cessa de repetir que vós ficareis, certamente, furioso, ao saber que... Que apanhastes frio a noite passada? Não estou nada surpreendido... nem furioso, aliás.
Mas tu disseste que jantavas com ela disse a aia, que parecia prestes a chorar.
Não vejo onde está a dificuldade, Juana! Pões a mesa junto da cama e mandas servir um jantar ligeiro. Vamos, acalmai-vos as duas! A culpa é minha, já que não vos apresentei uma à outra a noite passada. Precisava de repousar e pensava fazê-lo quando acordásseis, minha cara amiga.
E explicou de imediato a Fiora que ”dona Juana de Llançol” era uma prima afastada cuja família tivera dificuldades e que ele trouxera de Valência quando, cinco anos antes, o Papa o enviara ao seu país natal numa embaixada. Ela velava ”pelos armários e pelos servidores da casa”, possuía a sua total confiança e uma boa parte da sua afeição.