A Juana, que o escutava com lágrimas de ternura, ele disse que a sua convidada não era ”esta rapariga”, mas sim ”uma nobre dama vinda de França” que tivera a infelicidade de desagradar a Sua Santidade e à qual convinha oferecer uma grande hospitalidade.
Aquele discurso, aparentemente muito natural, não abrandou a desconfiança de Fiora. Por que razão esperara Bórgia que chegasse a noite para prevenir Juana? Além disso, na noite anterior, esta estava, visivelmente, à espera de ambos, não fizera qualquer pergunta nem erguera o sobrolho ao constatar que a recém-chegada usava o hábito de noviça.
Ao confrontar aquela singularidade com as confidências de Antónia Colonna a propósito do ”homem mais carnal que existe”, Fiora acabou por perguntar a si própria se não estaria nos seus hábitos percorrer as ruas de Roma de noite para arrebanhar raparigas e por que não, no fim de contas? seduzir de tempos a tempos uma pensionista de um convento qualquer. Sem dúvida, não ficaria com elas muito tempo, daí vindo o desvario da aia, ao constatar que a última descoberta resolvera adoecer. As suas suspeitas confirmaram-se ao ouvir Juana resmungar:
Devias ter-me prevenido que não era como habi...
Um gesto autoritário cortou-lhe a palavra e ela pareceu encolher sob o olhar brilhante em que ele a envolveu. Fiora achou que era tempo de intervir se não queria fazer daquela mulher, visivelmente tola, uma inimiga mortal.
Dona Juana deu-se a muito trabalho comigo, Vossa Eminência e tenho medo de ter sido mal-agradecida, mas confesso-vos que só a ideia de jantar me faz vir o coração à boca. O odor da comida...
É-vos insuportável? disse Bórgia com humor. Muito bem, minha querida, tratai-vos, eu vou jantar a casa de uma amiga. Mas talvez possamos conversar um pouco?
Certamente aprovou Fiora, encantada por se ter safado. Gostaria muito de saber notícias.
É o que eu pensava. Vai-me buscar um copo de vinho de Espanha, Juana e depois, deixa-nos sós! Virás depois acomodar dona Fiora para passar a noite.
O cardeal seguiu a saída da aia com o olhar e depois aproximou uma cadeira do leito.
Creio disse ele baixando o tom que achareis interessantes as notícias que vos trago. Fazia eu companhia ao Santo Padre na sua altanaria, onde ele estava a dar de comer à sua águia, quando Leone da Montesecco, o chefe da sua guarda, encarregado de vos ir buscar a Santo Sisto, regressou com as mãos a abanar.
E então?
Não me lembro de o ver antes tão encolerizado. Toda a gente teve a sua parte: o capitão porque não vos trazia, o cardeal d’Estouteville, convocado imediatamente e acusado logo de vos dar refúgio e até a águia, que ficou privada de metade da sua refeição: o Papa deixou-a ali plantada e regressou ao seu quarto, onde partiu dois ou três vasos para distender os nervos. O resto caiu em cima de dona Boscoli, que acabava de chegar com o sobrinho. Dizei-me, Dona Fiora, ela foi ontem ao convento?
Foi, mas o Papa deve sabê-lo: ela tinha uma autorização de visita.
É o que diz a madre Girolama. Acrescentou que a dama, sempre em nome do Papa, lhe deu ordem para fechar a vossa porta à chave.
E o Papa não sabia de nada? Foi ela que mandou pôr guardas diante das portas?
Não. A ordem veio do Vaticano, mas a autorização para vos visitar era falsa. O Santo Padre arrastou dona Boscoli pelas ruas da amargura, acusando-a de ter estragado tudo só pelo prazer de vos ir enervar.
O cardeal calou-se. Juana estava de regresso com um tabuleiro de prata, sobre o qual vinha um magnífico copo vermelho e dourado de Veneza e um jarro da mesma origem. Ela pousou tudo sobre uma mesa, encheu o copo com os gestos piedosos de um oficiante no altar e entregou-o ao primo com uma espécie de genuflexão que ele pareceu considerar natural.
Obrigado, Juana! Podes retirar-te. Eu chamo-te daqui a pouco.
A cólera do Papa não caiu também sobre vós? espantou-se Fiora.
Por causa da minha visita da semana passada? A prioresa de Santo Sisto é uma mulher inteligente. Ela achou preferível não falar disso, pensando, sem dúvida, que, se se calasse, talvez a pudesse ajudar. O que fiz. Expliquei ao Papa que era tudo culpa da dama Boscoli, que vos assustou em vez de deixar que o Santo Padre conduzisse o assunto como muito bem entendia. Acrescentei que vós sois, sem dúvida, uma mulher cheia de recursos. Em seguida, a zaragata tornou-se quase geral quando o cardeal d’Estouteville, que propusera espontaneamente que lhe revistassem o palácio, regressou, mas desta vez como acusador.
Como acusador? E quem acusou ele?
Mas, o papa, minha bela amiga, o Papa muito simplesmente. O cardeal camerlengo não é uma pessoa qualquer e, além disso, é o mais poderoso dos cardeais franceses. Foi preciso dizer-lhe exactamente o que se tinha passado e ao saber a escolha que vos ia ser dada, o machado do carrasco ou a mão do triste Cario, ele encolerizou-se, protestando com a injúria feita ao seu soberano, porque dispunham assim de vós sem sequer esperar pela resposta do Rei de França. Ameaçou queixar-se ao soberano. Não entro nos pormenores das injúrias trocadas: foram tão grandes, que a minha memória preferiu esquecê-las.
Monsenhor d’Estouteville não tem, portanto, medo do Papa?
Por que havia de ter medo? Ele representa aqui o Rei Luís de França, é o chefe da diplomacia vaticana, é também o cardeal mais rico de todos e, além disso, é de sangue real. É uma coisa que conta para o pobre monge franciscano, saído do nada, que ele ajudou a subir ao trono de São Pedro.
Estou a ver. Qual foi a conclusão dessa... zaragata?
Bem, por agora ficaram todos nas suas posições. O Santo Padre clama que, se põe a mão em vós, mandar-vos-á executar, quer isso agrade, ou não, a dona Boscoli e o cardeal determina, porque está longe de andar aos gritos, que se o Papa dispuser de vós sem o consentimento do Rei Luís, as alianças ficam como estão e ele nunca mais verá, nem em sonhos, o monge Ortega e o cardeal Balue.
Fiora guardou silêncio por uns momentos, brincando com o tecido sedoso do seu lençol, que enrolava e desenrolava em redor dos dedos.
E esse casamento de que me falaram... a dama Boscoli? Gostaria de ter a vossa opinião acerca desse assunto.
Bórgia olhou por um instante para a jovem envolta na seda branca dos lençóis que deixavam aperceber a curva suave de um ombro e o seu olhar acendeu-se ao imaginar outras curvas suaves, mais saborosas ainda, que se escondiam sob o luxo daquele leito principesco.
Que opinião vos posso dar? É preciso odiar-vos muito para ousar propor uma união entre vós, bela entre todas as belas, e aquele infeliz.
Em tempos, Hieronyma quis casar-me com o filho, Pietro Pazzi, que era um monstro e que suava maldade por todos os poros da pele. Foi por causa dele que ela mandou matar Francesco Beltrami, o meu pai. A despeito do meu nascimento... irregular, Hieronyma está possuída pela raiva de me casar na família, tanto teme que uma parcela, por mínima que seja, da nossa fortuna destruída lhe possa escapar.
Abandonando a sua cadeira, Bórgia foi encher de novo o seu copo e no momento em que o ia levar aos lábios, ofereceu-o à jovem:
Bebei! Estou certo que vos fará bem.
Ela pegou no copo, nas transparências do qual a chama de uma vela acendia fulgores sumptuosos:
É assim tão difícil falar-me de Cario Pazzi? Achais que preciso de ser confortada antes de abordar o assunto?
Ela esvaziou o copo de um trago e entregou-lho. Ele não pegou no objecto, envolvendo antes os dedos da jovem com a sua grande mão, pousou os lábios no local por onde ela tinha bebido e colheu uma última gota do vinho dourado.
É um outro género de monstro suspirou ele, por fim. Não é mau, disso estou certo, mas é uma dessas ruínas humanas que, por vezes, nascem nas mais nobres famílias. Dizem que ele é produto de uma violação e que, ao nascer, rasgou irremediavelmente o corpo da mãe. A ideia de que vos possam casar com aquele dejecto humano é intolerável para qualquer homem normalmente constituído. Não posso suportá-la... Vós fostes feita para o amor dos príncipes...