Dizem? Quem é que diz isso?
Rumores que correm, correntes de ar... Sua Santidade tem espiões muito activos na cidade da flor-de-lis vermelha. Não ignorais que ele tem, acerca dessa bela cidade, ideias bem assentes?
Púnhamos as coisas na pior posição possíveclass="underline" Riario toma Florença e terá todos os bens que quiser.
Oh não! O Papa quer que ele reine, mas não pode violar as leis nem despojar os habitantes. Sabe-se bem o que eles são capazes de fazer. É por isso que ele se interessa tanto por esse casamento. Os Pazzi daqui juntar-se-ão aos que ainda lá estão e reentrarão como triunfadores... mas legais.
E eu vou na bagagem deles? Muito obrigada.
Isso é menos certo disse Bórgia com um meio sorriso. Uma vez casada, não creio que a dama Boscoli vos deixe viver muito tempo. Acreditai-me! Sede razoável e preparai-vos para jantar comigo. Vou tentar distrair-vos.
Depende da distracção!
Ele desatou a rir e afastou-se na direcção da porta:
Não me olheis com esse olhar negro! Prometo-vos que não se passará nada. Talvez acrescentou ele com uma piscadela de olho eu não vos ache ainda suficientemente roliça para ser devorada!
Fico mais descansada! Ainda estais longe de estar satisfeito.
O jantar, foi encantador. Fiora estava feliz por saber que Lourenço de Médicis continuava seu amigo e que talvez, sob a sua égide, lhe fosse possível, um dia, regressar de cabeça erguida à cidade amada. Aquela notícia mudou um pouco os seus planos de fuga. A sua primeira intenção fora roubar uma barca para descer o Tibre e tentar, chegada à costa, embarcar para a Provença, mas não era uma boa ideia: os barcos de alto mar não viajavam durante o Inverno. Era preciso esperar pela Primavera.
Além disso, não possuía qualquer dinheiro para pagar a viagem. A possibilidade de passar por Florença oferecia perspectivas de esperança muito maiores. Setenta léguas, apenas, entre Roma e a capital dos Médicis! Os peregrinos, em busca dos grandes santuários, percorriam estradas bem mais longas e aquelas setenta léguas podiam fazer-se a pé.
Rodrigo Bórgia mostrou-se, nessa noite, o anfitrião mais atraente que podia haver. Com uma alegria natural, a sua conversação suavizou a refeição composta de ostras, pequenas lulas em molho escuro e espesso e galinha apresentada à romana, com pimentos, anchovas, tomate e presunto, tudo regado com um belo vinho de Frascati. Quanto à sobremesa de compotas, estas eram acompanhadas do suculento moscatel de Montefiascone, célebre por ter provocado, em 1111, a morte do cardeal Fugger.
Para divertir a sua convidada, Bórgia contou-lhe algumas histórias que lhe abriram, acerca da vida romana, vistas inesperadas. Assim, a jovem soube que o rapto era a distracção favorita da nobreza: raptava-se uma mulher ou uma rapariga e levava-se para um local afastado para uma pândega, após o que traziam de volta a heroína involuntária, deixando-a nas proximidades da sua casa. O que suscitava, claro, vingança, mas a vingança tinha uma reputação, em Roma, ao nível das belas-artes. Quanto mais cruel, mais era aplaudida. Bórgia contou a história da encantadora Lisabetta, mulher de Francesco Orsini, que, tendo sido surpreendida com um homem, teve de assistir à morte do seu amante, convidado para um festim e morto à paulada durante a sobremesa. Em seguida, o culpado foi colocado, em cruz, num quarto, onde, todas as noites, Lisabetta era atada ao cadáver até ao nascer do dia, levada depois para sua casa enquanto o Sol prosseguia o seu curso. Só recebia, como alimentação, dois bocados de pão e um copo de água.
Desta vez, Fiora não sorriu. Horrorizada, teve de esvaziar, para se recompor, um copo cheio de vinho.
E que lhe aconteceu?
Morreu, claro, e bem depressa, mas dizem que estava arrependida. Uma história edificante, não é?
É preciso ser homem para contar esse horror de modo tão ligeiro! Eu acho isso abominável. O vosso Orsini merece os tormentos do inferno. Quando penso que ao longo dos anos, os pobres têm usado as suas forças e o seu dinheiro em todas as estradas da Europa para vir rezar a esta cidade que eles acreditam santa, na qual eles vêem a Jerusalém celeste e o centro de todas as virtudes, quando não passa de uma cloaca!
Sois muito severa. Lembrai-vos que há aqui gente de muito mérito e quanto a esses peregrinos, conheço um que, tendo vindo há três anos para o jubileu, disse: ”Quando pomos os pés em Roma, a raiva fica e a fé vai-se... Dir-se-ia que isso vos diverte, a vós, um príncipe da Igreja? O vosso Sisto IV tem fé?
Evidentemente! Tem, até, uma devoção muito especial pela Virgem Maria, mas que quereis, é também muito ligado à sua família e não recua perante nada para que ela seja rica e poderosa.
Parece que também vós tendes filhos?
O cardeal pareceu fundir-se, de repente, num oceano de ternura:
São soberbos! Os mais belos rapazinhos que existem, sobretudo o meu Juan! Mas, confesso-vos, gostaria que a mãe deles me desse, agora, uma filha tão loura quanto ela. Chamá-la-ia... Lucrécia!
Em seguida, reparando nos lábios desdenhosos da jovem:
Vamos, não façais essa cara! A Itália é o país das crianças. Toda a gente, aqui, as tem.
Mesmo os cardeais, pelo que vejo?
Quase poderia dizer: sobretudo os cardeais, porque as mulheres que eles honram têm a certeza de que aos seus frutos não faltará nada. É assim que o cardeal Cibo tem um filho e o cardeal d’Estouteville também. O deste chama-se Jérôme e ele teve-o de uma forte e bela mulher, Girolama Tosti. É o actual senhor de Frascati, cujo vinho acabamos de beber. Quanto ao cardeal...
Piedade, monsenhor! Não digais mais! Gostaria de poder guardar um pouco da fé da minha infância!
A fé não é para aqui chamada! É preciso vivermos no nosso tempo e Roma, da qual não vistes, é verdade, senão o lado pior, não é, por isso, uma cidade menos agradável para nela se viver.
Nobres estrangeiros, como a Rainha da Bosnia, a Rainha de Chipre e a princesa grega Zoe Paléologue vivem aqui e não se queixam.
A sua situação não tem, certamente, nenhum ponto comum com a minha. Chega de conversa, monsenhor! Eu não quero ficar aqui. Dissestes, ainda há pouco, que Florença já não me é interdita: nesse caso, ajudai-me a regressar!
Ainda é muito cedo! Não cesso de vo-lo repetir.
Além disso, não me deixareis partir sem que eu pague um certo tributo, não é verdade?
Ele teve um riso doce e um pouco arrolhador enquanto olhava para o vinho dourado que lhe enchia a taça: Qual é o homem capaz de deixar passar o mais capitoso dos vinhos sem tentar encostar-lhe os lábios?
Os olhos de Bórgia brilhavam como carvões ardentes e Fiora sentiu-se, de repente, muito cansada. A jovem abraçou com o olhar a sumptuosa decoração verde e dourada, da qual já estava cansada.
Portanto, estou condenada a morrer aqui de aborrecimento? Quando poderei, ao menos, abandonar este quarto?
Seria imprudente. O meu palácio está cheio de servidores, de guardas e dos seus familiares; não posso estar seguro da lealdade de todos. Além disso, se fechasse as portas, seria dar a entender que há aqui um segredo. Sabe-se, claro, que mora uma beldade na torre, mas isso não tem nada de extraordinário!
Eu sei! exclamou Fiora, incapaz de se conter por mais tempo mas tendes de compreender que não posso ficar fechada entre estas quatro paredes sem fazer outra coisa senão olhar para elas? Depois de me terem raptado de França, só tenho visto prisões! Dois meses na cabina do navio, duas semanas em Santo Sisto, onde, pelo menos, havia um jardim e agora aqui! Prefiro morrer!
Acalmai-vos e tende um pouco mais de paciência! Mandarei trazer-vos livros, se gostais de ler e enviar-vos-ei um cantor cego, cuja voz é sublime. Virei ver-vos com frequência e por vezes, à noite, levar-vos-ei ao jardim...