Fiora teve de contentar-se com aquelas promessas, mas a impressão de sufoco aumentou à medida que os dias se passavam. Os livros foram-lhe de grande ajuda. Bórgia, que nunca lia nada, reunira, por vaidade, uma grande quantidade, sobretudo autores gregos e latinos, mas escolheu para ela os mais licenciosos e Fiora espantou-o quando lhe exigiu secamente autores ”sérios”, como Aristóteles ou Platão.
Que jovem tão séria! exclamou ele. As damas romanas gostam muito das histórias um pouco maliciosas. Predispõem maravilhosamente para o amor...
Mas eu não tenho nenhum desejo de ficar predisposta para o amor! Vede se compreendeis, monsenhor! Eu choro um marido que amava apaixonadamente e estou-vos muito agradecida pelo que fizestes por mim, mas ficai a saber que nunca serei vossa!
Ela pensou que ele se ia zangar, mas o cardeal contentou-se em sorrir com uma presunção que a arrepiou.
Saberei fazer-vos mudar de opinião!
Apesar do seu sorriso, havia uma ameaça nos seus olhos e Fiora deduziu dali que teria de ter muito cuidado. Havia demasiada violência contida naquele homem para que ele decidisse esperar muito tempo por ela. O cardeal estava persuadido de ser um amante excepcional e tentaria, mais cedo ou mais tarde, impor-lhe as suas carícias. Na sua ideia, ela ficar-lhe-ia, depois, indefectivelmente ligada. O que era o cúmulo do ridículo, mas que não traria nada de bom no futuro: admitindo que ela cedesse, uma única vez, aos seus desejos, nada lhe garantia que no dia seguinte Bórgia lhe abriria a porta da jaula e ajudaria a sua prisioneira a chegar a Florença. E Fiora achou que era tempo de tomar o seu destino nas mãos. E mais persuadida disso ficou após a cena absurda que teve por cenário o seu quarto de toilette.
Naquela manhã, Fiora acabava de entrar na grande tina cheia de água morna e perfumada. Era o único verdadeiro prazer do dia e ela gostava de o fazer durar um pouco mais, mas, para sua grande surpresa, Juana desapareceu sob o pretexto vago, depois de a ter ajudado a mergulhar no banho, de que a escrava negra, que a vinha habitualmente lavar, ainda não tinha chegado. A jovem não achou estranho, feliz, até, por ficar um pouco só e distendia-se voluptuosamente, de olhos fechados, quando ouviu o ligeiro ranger da porta. Pensando que era uma, ou outra, não se mexeu, mas a sensação de que algo de anormal se passava alertou-a e abriu os olhos. Plantado diante dela, Bórgia devorava-a com os olhos e, subitamente, deixando cair o roupão dourado que o envolvia, apareceu-lhe inteiramente nu. A jovem, estupefacta, ficou, por um momento, sem fôlego. Não que o seu corpo, moreno e vigoroso, fosse desagradável, mas uma grande parte era devorada por uma vegetação negra. Os pêlos negros e encaracolados subiam do baixo-ventre e assaltavam o peito, as axilas e os ombros. Fiora teve a impressão de ter diante de si um animal monstruoso, ainda por cima porque ele exibia complacentemente uma virilidade que explicava o cognome com que as cortesãs romanas tinham cognominado o ardente cardeal.
Ele olhava para ela com a cara gulosa de um lobo que se apresta a devorar uma ovelha, passando por um instante a ponta da língua pelos espessos lábios vermelhos-escuros. Espantada, Fiora encolheu-se e quando ele pôs um pé na água, na intenção evidente de se lhe juntar, ela lançou um grito que fez voar os pombos no alto da torre, saltou do banho empurrando o assaltante que caiu e ficou sentado e fugiu, ensopada, para o quarto. Ali, arrancando um dos lençóis do leito, enrolou-se nele a tremer, correu a refugiar-se num dos bancos de pedra encastrados em cada vão da janela e abriu esta, diante da qual ficou, decidida a atirar-se se Bórgia fizesse tenção de se aproximar.
Mas quando, no instante seguinte, ele reapareceu já vestido com o roupão dourado e vermelho de furor, contentou-se em atirar à jovem um olhar fulgurante, atravessou depois o quarto em grandes passadas e saiu batendo com a porta.
O barulho pareceu acordar Juana que, ocupada a preparar um vestido por ocasião da entrada de Fiora, ficara petrificada e seguira a cena com estupefacção.
Meu Deus! articulou ela, por fim. Não me ides dizer que o repelistes?
Ter-me-ia atirado da janela se ele tivesse tentado aproximar-se uma segunda vez!
Mas porquê? Porquê? Não é ele magnificamente belo?
É possível, mas eu não sou sensível a esse género de beleza! Não é um homem, é um macaco!
Como podeis dizer isso? Os pêlos do corpo dele são suaves como a lã de um cordeiro recém-nascido. Ele é o próprio deus do amor acrescentou Juana com um tremor na voz e quando nos possui, é o paraíso que se abre.
Fiora olhou para a aia com uma estupefacção sincera.
Que sabeis vós disso?
Dona Juana ficou vermelha como um pimento e começou a mexer nas chaves que trazia ao cinto, baixando pudicamente os olhos.
Sei! afirmou ela. Há vinte anos... amámo-nos... sob as laranjeiras do meu jardim, em Jativa. Nunca mais o pude esquecer e quando ele me pediu, há cinco anos, que viesse para Roma para velar por ele, não hesitei um instante.
Então... recomeçastes?
Não. Ele ama a juventude. Aliás, uma recordação destas chega para iluminar toda uma vida concluiu ela com espírito.
E agora tratais das raparigas que ele traz para aqui? Não tendes ciúmes?
Ultrajada pelo que ela considerava uma ofensa, Juana endireitou-se e voltou a ser, por um instante, o que fora em tempos: uma espanhola altaneira e desdenhosa, plena de devoção e unicamente consciente da antiguidade da sua raça.
Ciumenta, eu? E de quê? Dessas raparigas de nada que ele apanha para seu prazer e que eu visto e perfumo para que elas fiquem dignas de passar um momento no seu leito? Para mim, é a mesma coisa que pôr açúcar nos bolos de que ele gosta. O que conta, é que nas nossas veias corre o mesmo sangue. Essas raparigas não passam de um pouco de poeira. O prazer dele antes de tudo! Chegou-me a acontecer segurar em algumas enquanto ele saciava o desejo. E queríeis que eu tivesse ciúmes?
De facto, não suspirou Fiora. Belo trabalho fazeis, na verdade! Em todo o caso, metei bem isto na cabeça: eu não sou, eu, uma rapariga de nada, e o vosso Bórgia não só não me interessa, como me repugna!
O barulho de uma cavalgada na rua fê-las calarem-se. Juana abriu uma janela, olhou para fora e voltou a fechá-la, dando mostras de uma profunda aflição:
Ele vai-se embora! Expulsaste-lo! De que material sois feita?
Do material das mulheres honestas. Algo que parece não haver em Roma. Dizeis que ele se foi embora? E para onde, segundo vós?
Ele leva o chuço e a roupa de caça. Acho que vai para Magliana, aos javalis.
E... é longe, Magliana?
Uma villa nos arredores de Roma, mas quando ele vai para lá é para relaxar os nervos e demora-se, pelo menos, dois dias.
Dois dias de tranquilidade! Que sorte! Sorte? Quando regressa, vem ébrio de sangue e de vinho... e será com alegria que te atarei a esta cama! Fizeste troça dele durante muito tempo, minha bela! Vais pagar um preço bem alto!
E com a altivez soberba de uma rainha de teatro, Juana abandonou o quarto. O som da chave a girar várias vezes na pesada fechadura convenceu Fiora de que estava, uma vez mais, enclausurada. Mas preferia a solidão à companhia da adoradora de Rodrigo.
A jovem começou por se desembaraçar do lençol molhado, vestiu-se, escovou os espessos cabelos negros que entrançou simplesmente numa única trança grossa e foi sentar-se na poltrona de que gostava mais, para reflectir. Era preciso, custasse o que custasse, abandonar aquele palácio antes do regresso do seu proprietário, porque esse regresso, a acreditar no que lhe tinham dito, seria mais do que desagradável. Já era uma sorte Bórgia ter escolhido ir descarregar o seu furor nos javalis, em vez de se atirar a ela. Mas, como sair dali?
As únicas saídas à sua disposição eram as janelas e ela sabia há muito tempo que estavam situadas a uma altura demasiado grande para permitir uma evasão, mesmo atando uns lençóis uns aos outros e acrescentando alguns cintos.