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Por outro lado e admitindo que conseguisse, não teria chegado ao cabo dos seus trabalhos. Para onde ir, uma vez fora do palácio Bórgia? O único asilo onde poderia refugiar-se, o palácio do cardeal d’Estouteville fora-lhe impossível saber onde era, se perto se longe, se de acesso difícil ou fácil. Aliás, qual seria o acolhimento? Bórgia dizia que Luís XI não respondera ao correio enviado pelo camerlengo e que, muito provavelmente, ele a abandonara ao destino que o Papa lhe reservaria. Talvez fosse falso, mas também podia ser verdade. Não encarregara ela, na véspera do seu rapto, a princesa Joana de romper os laços entre a viúva de Pilippe de Selongey e o Rei de França? Nesse caso, era possível que monsenhor d’Estouteville tivesse pressa de a levar, devidamente acorrentada, ao Vaticano.

Não, o melhor seria, sem dúvida, se conseguisse sair, dirigir-se para norte, quer dizer, na direcção de Florença, esconder-se até à abertura das portas e depois pôr-se a caminho. Infelizmente, entre Fiora e a bem-aventurada estrada da Toscânia estavam as paredes do palácio Bórgia, as portas do palácio Bórgia, os guardas do palácio Bórgia e, para terminar a prima de Bórgia... que parecia ter decidido reduzir a sua prisioneira à fome, porque não reaparecera em todo o dia.

Primeiro, Fiora pensou que não tinha importância. Tinha água numa garrafa e até vinho de Espanha. Tinha, também, frutos, que lhe permitiriam não passar fome. E, subitamente, teve uma ideia luminosa, deslumbrante. Simplesmente, era preciso, era preciso a qualquer preço, que Juana regressasse.

As longas horas da tarde foram passadas por Fiora a aperfeiçoar o seu plano e a reunir os objectos de que teria necessidade. Na divisão dos banhos a jovem encontrou a brocha de cabo longo que servia para limpar a tina de mármore. Depois, com a ajuda de uma tesoura, cortou as grandes toalhas em grandes tiras, que entrançou para as tornar mais sólidas e atou-as umas às outras. Por fim, examinou com um olhar crítico as roupas que lhe tinham sido dadas. Ali é que estava o ponto difícil. Como correr pelas ruas vestida de cetim, de brocado ou de musselina? Como, sobretudo, ir a pé com os sapatos que possuía? Eram todos de veludo bordado ou de cetim claro. Tinha mesmo uns de salto alto à Veneziana, que nunca calçara, achando-se demasiado alta. Naturalmente, as sandálias de corda trazidas do convento de Santo Sisto tinham sido queimadas, tal como o resto das roupas que de lá trouxera. Era uma pena, mas como não via nenhuma solução para o problema, decidiu entregar-se à Providência. Como consequência, escondeu a corda improvisada numa das arcas de roupa e sentou-se de novo para fazer de conta que lia A Divina Comédia. A jovem gostava do longo poema de Dante, mas a sua atenção estava longe, dirigida para os sons exteriores. Nas pregas do seu vestido dissimulava a arma improvisada que encontrara.

O dia caiu sem que pensasse em levantar-se para acender as velas. O seu coração batia um pouco mais depressa a cada som que pensava ouvir vindo do interior da torre. Um obscuro pressentimento dizia-lhe que a sua fuga teria lugar, ou naquela noite, ou nunca. Iria Juana, por fim, mostrar-se, ou esperar o regresso do primo na esperança de que a solidão, a inquietação e a falta de alimentação tornassem a prisioneira mais maleável?

Para melhor respirar, porque se sentia sufocar, Fiora foi abrir a janela que dava para a cidade. O tempo estava húmido e fresco. Pesadas nuvens corriam de um lado ao outro do horizonte. O Sol, que não se mostrara durante todo o dia, não tinha qualquer razão para se deitar e Roma passou lentamente de uma espécie de claro-escuro para as trevas nocturnas que nenhuma estrela, certamente, viria iluminar. O ar cheirava a lodo e aos detritos de toda a espécie que enchiam o rio vizinho. Alguns pontos luminosos acendiam-se de longe em longe na imensidão cinzenta sem nada retirar ao lado sinistro com que a noite vestia a Cidade Eterna sob os seus campanários e torres de vigia.

Subitamente, Fiora pensou num pormenor de que se tinha esquecido. A jovem voltou a fechar a janela, foi acocorar-se diante da chaminé onde o fogo morria por falta de alimentação e acendeu duas velas nas brasas ainda vermelhas. Em seguida, entrou na sala de banhos que possuía o luxo inaudito de um grande espelho de Veneza pendurado na parede. A jovem levara consigo a sua luz, com que se pentear e, bem entendido, a sua brocha de cabo longo da qual decidira, chegada a noite, não se separar.

Uma vez ali, Fiora libertou os cabelos e dividiu-os em duas tranças que enrolou em redor da cabeça à maneira de Dona Juana. Estava mesmo a terminar quando ouviu, no quarto, um barulho de loiça que lhe fez bater o coração. Ao mesmo tempo, deslizou por baixo da porta um raio de luz. Teria chegado o momento?

Segurando firmemente o cabo de ébano na mão, ela abriu a porta e sentiu invadi-la uma onda de alegria. Juana estava ali. Inclinada sobre o estrado que um escravo tivera de montar para poder chegar até Fiora, a espanhola dispunha os alimentos e depois, deitando vinho numa taça, beberricou-o voluptuosamente antes de encher, de novo, o recipiente. Entregue ao seu prazer, não ouviu chegar Fiora.

Esta não hesitou. Brandindo a sua arma improvisada, abateu-a com todas as suas forças sobre a cabeça da aia, que caiu sem um grito. Aquilo foi tão súbito que a jovem, um pouco inquieta, acocorou-se junto da grande forma negra e inerte, temendo tê-la morto. Esse medo fora a única razão pela qual Fiora escolhera a brocha de ébano em vez do atiçador de bronze. Rapidamente se tranquilizou. Os cabelos tinham amortecido o choque e Juana ficaria apenas com um grande galo. Não havia tempo a perder.

Aguilhoada pela pressa, Fiora despiu a velha solteirona, que atou em seguida com os atilhos que confeccionara. Em seguida, meteu-lhe na boca um lenço, que ajustou com uma écharpe de seda. Por fim, puxou-a pelos pés para a sala de banho, onde a abandonou sobre o tapete antes de fechar de novo a porta à chave. Admitindo que Juana conseguisse libertar-se, demoraria algum tempo até que fossem em seu socorro, já que a pequena sala não tinha janela, apenas uns buracos de ventilação.

Após a porta fechada, Fiora exalou um profundo suspiro de alívio. Temia, tanto quanto desejava, o instante de atacar Juana e o mais difícil já estava. Bebeu um copo de vinho para se recompor e apressou-se a vestir as roupas da aia. Eram um pouco grandes, mas ela meteu as saias no cinto de couro que apertou ao máximo sem esquecer, claro, as chaves que estavam penduradas nele. Em seguida, prendeu com um alfinete o véu de musselina negra à cabeça e não hesitou um segundo em colocar em redor do pescoço a pesada corrente de ouro de que Juana tanto se orgulhava. Como não possuía um tostão, aquela corrente, vendida aos bocados, permitir-lhe-ia comer ao longo do caminho e, talvez, comprar uma mula.

Estava-lhe reservada uma boa surpresa: os sapatos da aia, uns robustos sapatos de couro, eram como as roupas, um pouco grandes, mas, metendo-lhe lá dentro uns pequenos tampões de pano para os encurtar, fez com que se sentisse bem dentro deles. Evidentemente, o odor das roupas que pedira emprestadas não era muito agradável. Juana gostava dos perfumes pesados. Tudo aquilo cheirava a incenso, a cravo picante e a azeite, mas Fiora pensou que a sua liberdade não tinha preço. Enfim, após um último olhar para aquele quarto do qual pensara nunca mais sair, abriu a porta e deslizou para o exterior. E foi com um grande prazer que girou três vezes a grande chave na fechadura. A seguir, tratava-se de sair do palácio, do qual ela ignorava os cantos para além do que pudera aperceber da sua janela: uns edifícios construídos em redor de um grande pátio de dupla fileira de arcadas dominadas pela torre no alto.

A jovem viu que se encontrava num patamar iluminado por uma lanterna de azeite. Um lanço de escadas estreitas subia para o terraço onde estavam os guardas e um outro descia para as profundezas do edifício. Foi por este último que ela se meteu, puxando o mais possível o véu negro sobre o rosto e esforçando-se por imitar o porte daquela a quem tirara as roupas.