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Philippe sorriu e pousou uma mão amigável no ombro daquele último amigo.

Creio que Deus providenciou. Se queres ainda fazer qualquer coisa por um ”conterrâneo”, reza-Lhe para que a minha bela mulher, que está longe daqui, infelizmente, mas que está grávida, dê ao mundo um filho. Com uma mãe daquelas, ele saberá, estou certo, honrar o nosso nome.

Philippe estava pronto. O barbeiro retirou-se com as lágrimas nos olhos e foi substituído por um piquete de soldados que não ultrapassou a porta. O velho carcereiro tirou uma chave do molho que transportava à cintura e desembaraçou o prisioneiro dos ferros que o prendiam às correntes, logo substituídas por uma corda sem que o prisioneiro tivesse tido tempo, sequer, de esfregar os pulsos doridos. Philippe viu-se com as mãos atadas atrás das costas. Protestou:

Não posso morrer com as mãos livres?

São as ordens respondeu o sargento que comandava o piquete de arqueiros. E agora vamos, que chegou a hora!

Com um último olhar para aquela prisão que tanto detestara, mas que, no entanto, se lhe tornara querida porque lhe parecera ver flutuar nela a sombra límpida de Marie de Brévailles, o condenado franqueou a porta baixa seguido do seu confessor que rezava de cabeça inclinada, colocou-se entre os soldados que o esperavam, trepou com eles a escadaria cujos degraus de pedra, utilizados por milhares de botas ferradas, estavam gastos ao meio e saiu, por fim, para a rua onde o esperava uma carroça, talvez a mesma que conduzira os Brévailles à morte vinte anos antes, porque era um veículo velho, de pranchas de madeira desconjuntadas. No entanto, ao vê-la, Philippe deixou sair um novo suspiro de alívio. Temia a humilhação suprema de ser arrastado pelo meio da poeira e dos detritos como era hábito em Dijon com os condenados. Como não era o caso, sentiu-se bastante melhor. Lembrou-se que não terminara o seu pão, mas não sentiu pena; sentia-se bem-disposto e em plena posse das suas faculdades, o que não podia deixar de ser uma graça de Deus. Decidido a esquecer este mundo, ergueu os olhos para o céu de um azul delicado que a incandescência do sol de Verão ainda não branqueara. O dia prometia ser belo. Tinha, naquela manhã, a glória triunfante da juventude. Estava um tempo bom para correr pelos prados, para pescar num ribeiro com um jarro de vinho metido na água corrente para refrescar, um tempo bom para ler belos versos à sombra de um velho carvalho ou simplesmente cheirar as rosas levando pela mão a dama amada, um tempo bom para a felicidade e para a alegria de viver, enfim...

Enquanto a carroça se afastava aos solavancos sobre as grandes pedras da rua pavimentada e em todos os campanários os sinos das igrejas começavam a tocar a finados esse toque não cessaria senão no momento em que a sua vida se extinguisse Philippe preferiu olhar para o cimo das árvores onde as aves cantavam e para o céu que, esse, celebrava tão bem, naquela manhã, a glória de Deus. O mundo dos homens, na verdade, não era belo, e ele preferia ignorá-lo. Zumbia de troça, de injúrias, que se erguiam à passagem da carroça. Aquele povo era incompreensível. Primeiro, parecia ter-se entregue à sua princesa hereditária e agora vaiava um homem que o quisera ajudar a permanecer fiel. Na realidade, aqueles que sentiam a perda do duque Carlos não eram muito numerosos e se não estavam prontos a acolher a autoridade do Rei de França, aquele que ia morrer tinha a impressão aflitiva de que a morte do Temerário aliviara mais do que um. Quantos mais homens novos fossem recrutados para tapar os buracos que as derrotas tinham semeado nos exércitos, mais impostos seriam forçados a pagar para o tesouro de guerra! Já não seria necessário esconder os bens nem desconfiar do vizinho. Aquela cidade tinha mais burgueses do que fidalgos e os burgueses sempre foram amigos da paz.

Ao ouvir todos aqueles sinos, Selongey teve um pensamento e inclinou-se para o pequeno monge que, a seu lado, recitava a oração dos agonizantes.

Eu pensava sussurrou ele que depois da batalha de Morat o duque Carlos tinha ordenado que todos os sinos da Borgonha fossem levados para a fundição de canhões? Parece-me que ainda restam muitos? Terão tido tempo de fundir novos?

O irmão ergueu para ele um olhar estupefacto:

Vós ides, dentro de momentos, comparecer diante de Deus, meu irmão! Não achais que seria mais conveniente ter outros pensamentos?

Eu vou deixar este mundo. Deixai que me interesse por ele um pouco mais! Então, esses sinos?

Levaram, sobretudo, os das aldeias. Aqui, as igrejas também deram alguns, mas os menos belos. Alguns são verdadeiras obras de arte, com vozes divinas. Teria sido um sacrilégio fazer deles bocarras de fogo.

Os humildes sinos das aldeias tinham, para os seus camponeses, quando davam as horas, o mesmo valor. Não coreis, meu irmão! Lá onde ele está... para onde eu também vou dentro de momentos, o duque Carlos já não pode amesquinhar os homens.

Achais que estais em condições de julgar, neste momento? Esquecei o que fostes e pensai que não passais de um homem entre os homens, que ofendeu a Deus.

Pedir-lhe-ei perdão dentro de momentos. Mas, nem mais uma palavra, meu irmão: estamos a chegar!

Philippe experimentou uma sensação bizarra. Acabava de sair da masmorra onde Marie de Brévailles sofrera as dores do parto; agora, ia para a morte numa velha carroça, talvez a mesma da última viagem dos jovens amantes incestuosos e sentia-se perto deles como nunca. Aquele ligeiro estremecimento, no seu ombro, seria provocado pela mão suave da sua sogra? Aquele sussurro no seu ouvido seria a voz de Jean, que, quando ele próprio não passava de um pajem turbulento, sabia tão bem levá-lo para o bom caminho e evitar-lhe as severas correcções do camareiro-mor ducal? Nada supersticioso e pouco inclinado a interrogar-se acerca dos mistérios do Além, o condenado sentiu-se, no entanto, envolto numa espécie de bem-estar, rodeado por algo de caloroso que não tinha nada a ver com o ardor do sol, mas que lhe reconfortava a alma e lhe sustentava a coragem. E foi com naturalidade que murmurou:

Velai por eles, peço-Vos! Pela minha mulher e pelo meu filho. Eles vão ter necessidade. Eu, dentro de momentos, juntar-me-ei a Vós...

Que dizeis, meu irmão? inquiriu o monge.

Nada. Rezava.

Como de costume por ocasião de uma execução capital, a praça Morimont estava cheia de gente. A cidade inteira amontoava-se ali de tal modo que era impossível distinguir um rosto. Havia gente em cima dos telhados e nas árvores e, sobre aquele mar humano, o cadafalso vestido de negro parecia uma jangada navegando na direcção da alta tribuna, no alto da qual tomara lugar La Trémoille, os seus oficiais e os almotacés, cujos trajes vermelhos se assemelhavam estranhamente à vestidura do homem encapuçado de pé junto do cepo, apoiado com as duas mãos numa longa espada de lâmina larga.

À chegada da carroça, a multidão fez silêncio. O aspecto do condenado e a sua altivez impunham-se-lhe. Sabia-se que pertencia a uma das famílias mais nobres da Borgonha, que era cavaleiro do Tosão de Ouro e que fora amigo do Temerário.

Além disso, era belo e numerosos foram os olhos das mulheres que se molharam. Para os homens, era a imagem de um passado soberbo e faustoso que muitos não queriam regressado, talvez porque os tinha conduzido às portas da ruína, mas que permanecia prestigioso. Os capuzes e os gorros saíram das cabeças, enquanto as mulheres se benziam.

O lúgubre cortejo avançou lentamente, fendendo a multidão que os alabardeiros abriam diante dele. E, subitamente, aconteceu um turbilhão. Um homem vestido de negro e brandindo uma espada, acabava de subir para o cadafalso e gritava:

Povo da Borgonha, tornaste-te tão cobarde e frouxo que deixas degolar sem hesitar os melhores dos teus? Este homem não cometeu nenhum crime. Quis, apenas, que a nossa velha terra permanecesse independente. Quis que ela permanecesse fiel à sua duquesa, Madame Maria, que é a única a ter o direito de reinar aqui e não os homens do Rei de França... Povo da Borgonha, tu eras orgulhoso e corajoso, mas agora pareces um rebanho de carneiros! Acorda! Se não o fizeres, talvez subas, amanhã, para este cadafalso...