A história de Khatoun era simples e triste. A jovem tártara contou-a a Fiora no dia seguinte. O homem que ela conhecera em casa da Virago, Sebastiano Dolci, era um médico rico de Roma que, sob o pretexto de viajar para se instruir, gostava de esquecer, na casa de Pippa, a austeridade exigida pelas conveniências de uma existência burguesa e conformista pela qual velava, depois da viuvez de Sebastiano, uma tia já idosa. Essa dignidade um pouco severa valera-lhe a consideração dos seus vizinhos e um gabinete com a melhor das freguesias. Mas, de tempos a tempos, Sebastiano, que só tinha quarenta anos, sentia a necessidade de se evadir e foi assim que, tendo ido um dia a Florença para ali se encontrar com um professor da Universidade, descobrira um lugar de prazer, ao qual acabara por votar uma certa fidelidade. Pippa sabia que género de raparigas ele preferia e ele raramente ficava desiludido, mas na noite em que ela lhe levou Khatoun, ele sentiu uma emoção tão profunda que recusou, chegada a manhã, separar-se dela e comprou-a à alcoviteira.
Pelo seu lado, Khatoun sentira-se seduzida por aquele belo, doce e terno homem, que ao saber que ela era virgem a tratara como teria tratado a sua noiva na noite de núpcias. Tinham feito amor alegremente e foi com a mesma alegria que a pequena tártara seguiu aquele novo senhor que só queria ser seu escravo. A jovem acompanhara-o a Roma com o coração tanto mais ligeiro quanto os latidos da Virago, de madrugada, lhe tinham anunciado que Fiora, liberta por Demétrios, conseguira escapar aos seus inimigos.
Sebastiano estava tão apaixonado que quis casar com Khatoun, na viagem de regresso numa pequena capela perto do lago Trasimène e foi quase em triunfo que a levou para sua casa na via Latina. Um triunfo que não fora do agrado de toda a gente.
O médico apaixonado bem dissera que a sua jovem esposa era uma princesa exilada que um navio veneziano embarcara em La Tana e trouxera para as margens do Adriático, mas a tia só via uma coisa: o seu sobrinho tinha-se apaixonado por uma rapariga de cor que não podia inspirar nenhuma confiança à cristã picuinhas que era. O facto de Khatoun ter jurado que era baptizada e crente não mudara nada: a tia recusara-se a dar-lhe, na casa, o lugar a que tinha direito, não a autorizando a existir, bem contra a vontade, mas pela força das coisas, senão na câmara conjugal.
Não ter que gerir uma casa não desgostara absolutamente nada a jovem signora Dolfi. Ela ignorava quase tudo acerca da profissão de dona-de-casa, porque, no palácio Beltrami, lugar onde nascera na realidade, tinha um papel puramente decorativo na generalidade e em particular o de ser companheira de Fiora. Sentia-se feliz por se consagrar unicamente ao seu querido Sebastiano e se, por vezes, os dias de solidão lhe pareciam longos e um pouco amargos, as noites compensavam-na amplamente pelo ardor que os jovens esposos punham no amor.
E então, no decurso de uma dessas noites, Sebastiano tivera que sair. Um doméstico do cardeal Cipriani, que sempre protegera a sua família, fora buscá-lo de urgência e Khatoun esperara em vão o seu regresso no leito de lençóis amarrotados, cuja almofada conservava ainda a forma da sua cabeça. Encontraram o cadáver no Tibre no dia seguinte e, nessa mesma noite, a pobre Khatoun, cuja tia nunca admitira a realidade do casamento, fora conduzida à força a casa de um traficante de escravos do Transtevere. O homem fechara-a o tempo necessário para que acalmassem, se os houvesse, os rumores causados pela morte do médico e a eventual curiosidade da polícia; muito eventual, aliás, porque aquele género de descoberta era demasiado frequente para que os homens do Soldan procurassem saber a verdade. Então, o mercador propôs aquela peça rara a lenda da princesa exilada era boa ao conde Girolamo Riario, que a ofereceu à sua jovem mulher, não sem a ter feito passar, primeiro, pelo seu leito.
Aquela última noite fora a última da lista de infelicidades de Khatoun. A jovem condessa Catarina era orgulhosa e um pouco arrogante, mas era boa e generosa. A sua nova escrava agradou-lhe ao ponto de fazer dela a sua nova favorita e até sua confidente. Junto dela, Khatoun reencontrou quase o papel que fora o seu em casa de Fiora durante tantos anos.
Mas não é como tu suspirou ela como conclusão do seu relato. Há uma violência nela que não ousa mostrar, porque está longe de ser feliz com o conde, que é bruto, um homem comum, cujo tio se tornou Papa e que, por isso mesmo, esmaga tudo à sua volta. A única coisa que ama é o ouro.
Mas a sua mulher é bela! Ele não a ama?
Ele tem orgulho nela porque é princesa, mas não se trata de amor. Imagina que ela tinha onze anos quando casou com ele e, por isso, ele exigiu que a noite de núpcias tivesse lugar nessa mesma noite. Creio que ela nunca lhe perdoará.
Mas ela está grávida, se bem me lembro?
Está. Vai dar à luz um dia destes. Apesar de odiar o marido, é obrigada a suportá-lo. Oh, tem grandes compensações: é a Rainha de Roma. Tudo o que conta na cidade está a seus pés. E depois, tem os livros, o saber. No palácio, há uma sala para onde ela gosta de se retirar para compor filtros, poções e unguentos para a beleza.
Ela faz alquimia?
Não sei se essa prática se chama assim, mas a condessa vem aqui muitas vezes. É ela que protege Anna, a judia é assim que a chamam porque aprende muitas coisas em casa dela. Além disso, Anna compõe-lhe leites, cremes e emplastros que embelezam ou ajudam a conservar a beleza. Dona Catarina escreve tudo num livro que guarda ciosamente.
Decididamente, é uma mulher surpreendente disse Fiora mas ela não se espanta com as tuas ausências? Há dois dias que vens aqui. Ela deu-te autorização?
Eu disse-te que ela é boa. Quase lhe confessei a verdade: que tinha encontrado a minha amiga de antigamente, que ela estava doente e que precisava de mim.
É verdade, Khatoun. Eu preciso de ti. Infelizmente, teremos de nos separar em breve. Assim que tiver recobrado as forças
1 As receitas de beleza recolhidas. por Catarina Sforza, condessa Riano, são um facto histórico assim como as suas relações com Anna, a judia que estava ao mesmo nível da sala de entrada, para ali ir buscar água e depois aventurou-se na adega que servia de laboratório à sua anfitriã e folheou alguns livros, mas a maior parte estava escrita em caracteres hebraicos e ela não compreendia nada. Apenas um tratado de Hipocrates, em grego, poderia ter retido a sua atenção, mas não sentia qualquer afinidade pela medicina e regressou ao seu quarto, não sabendo em que ocupar o tempo.
pedirei a Stefano Infessura que me ajude a sair de Roma. Quero ir para Florença, para estar ao abrigo das garras do Papa e de Hieronyma e depois regressar a França!
E eu vou contigo. Não te quero deixar mais... e depois, tenho vontade de ver outra vez Dona Léonarde e de conhecer o bebé Philippe.
Achas que Dona Catarina te permite uma coisa dessas?
Que permita ou não, não tem importância. Pela lei dos escravos, eu pertenço-te porque nunca me vendeste, nem expulsaste... nem libertaste.
Sim. Há muito que foste liberta, Khatoun. Desde o dia em que, para me tentares libertar, te atiraste para as patas da Virago. Sabe-lo bem.
Sei, mas não quero que isso se saiba.
A entrada de Anna interrompeu a conversação. A bela judia vinha renovar, como fazia duas vezes por dia, o penso da doente, coisa que lhe dava, aliás, grande satisfação. Fiora escapara, graças aos seus cuidados, à febre que teria retardado uma cura que avançava a grandes passos. Anna tinha, portanto, todas as razões para se alegrar e, no entanto, nessa noite, tinha ciúmes.