O Infessura não apareceu ontem, nem hoje disse ela quando prometeu que viria todos os dias...
. Não é antes a noite que é preciso esperar? perguntou Fiora. Não o vimos a última noite, sem dúvida. Deve ter sido impedido. Há-de vir esta...
No entanto, a noite passou sem que o escriba republicano batesse à porta. Nem o viram no dia seguinte e a quarta manhã nasceu sem que ele aparecesse.
É preciso saber o que se passa declarou Anna. Vou fechar esta casa cuidadosamente e vou a casa dele. Não abras a ninguém, nem sequer a Khatoun! acrescentou ela para Fiora.
Tirando rapidamente a sua tiara dourada e os seus vestidos tradicionais, Anna vestiu roupa de criada, calçou umas socas, enfiou um cabaz no braço como se fosse ao mercado e abandonou a casa pelo pátio das traseiras que a abóbada redonda fazia com que comunicasse com a rua.
Só, Fiora, que desde a véspera se sentia suficientemente bem para se levantar, errou pela casa. Tinha sede e desceu à cozinha, Maquinalmente, aproximou-se da janela diante da qual, naquela mesma manhã, Anna estendera algumas peças de roupa. Era possível observar o que se passava na rua. Por prudência, Fiora permaneceu ao abrigo dos cortinados. O espectáculo não tinha nada de muito interessante: alguns passantes pobremente vestidos, quase todos com a rodela amarela, crianças jogando ao pião em cima de uma antiga laje romana e, como pano de fundo, a fachada rebarbativa do palácio Cenci, que parecia fechado sobre si mesmo e cuja massa dominava desdenhosamente o bairro.
Subitamente, a atenção de Fiora fixou-se: um homem acabava de sair daquele palácio mudo, virando a cabeça para todos os lados como se procurasse saber de onde vinha o vento e depois, sem mesmo se dar ao trabalho de se içar para a sela, pôs-se em marcha lentamente, lentamente, observando as fachadas das primeiras casas do gueto. Aquele homem era GiovanniBattista de Montesecco. Era o homem que a raptara em França e a trouxera cativa para Roma.
O coração da jovem falhou um batimento. Que procurava ele naquele bairro miserável? Visitara, sem dúvida, um habitante qualquer do palácio Cenci, mas o local não era um lugar de passeio agradável e ele devia ter-se afastado rapidamente. No entanto, ia devagar, parava para ver qualquer coisa, voltava atrás e voltava a partir. Por trás dos cortinados, Fiora murmurou uma oração para que Anna não regressasse naquele instante. Mesmo disfarçada, atrairia certamente, nem que fosse pela sua beleza, a atenção daquele homem que era na realidade, sob o vocábulo de condottiere, um chefe de espadachins.
Felizmente, quando Anna reapareceu com o cabaz cheio, Montesecco já tinha desaparecido há alguns minutos na direcção oposta. Fiora desceu ao seu encontro, o que a surpreendeu:
Levantaste-te? Não será ainda um pouco cedo?
Por que não? Não tenho febre e as minhas pernas parecem-me sólidas. Enfim, não gosto de ficar deitada quando o posso evitar. Tens novidades?
Tenho, e não são boas. O Infessura foi preso antes de ontem.
Fiora sentiu-se empalidecer:
Meu Deus! E... sabe-se porquê?
Não, mas a opinião geral é que o Papa o mandou prender pelo Soldan por causa dos seus escritos, que percorrem as ruas da cidade. É o que ele chama as notícias da noite. Encontram-se muitas vezes no mercado do Campo del Fiori ou ainda perto de uma velha estátua, resto de um grupo antigo, que as pessoas do bairro chamam Pasquino. Stefano gosta de colocar lá os seus panfletos. Parece que o último falava do senhor Santa Croce, que teria tentado violar uma mulher nas minas do mausoléu de Augusto...
Doce Jesus! Mas, essa mulher sou eu! Que loucura, gritar essa história aos quatro ventos! Stefano salvou-me e foi lá que recebi o golpe de estilete.
Uma loucura, sem dúvida... a menos que ele tenha pensado que ninguém ousaria atacá-lo? O povo gosta dele e o que ele procura, no fundo, é sublevar esse mesmo povo para que Roma possa tornar-se uma república à maneira dos tempos antigos. Não se ensaia nada de dizer que não se faz nada de bom nesta cidade, que o número de roubos, de homicídios e de sacrilégios não cessa de aumentar. E que tem esperança na força de uma multidão indignada e furiosa.
Não sei se ele tem razão. Em todo o caso, já não é um ”homem livre” e eu sou um pouco culpada. Além disso, tenho que te falar no que vi há momentos.
Anna escutou, sem dizer uma palavra, o curto relato de Fiora e não se mostrou muito emocionada:
Pode ser que se trate de uma coincidência disse ela por fim. Os irmãos Montesecco, Gian-Battista que tu conheces, e Léone, o capitão da guarda pontifícia, têm excelentes relações com as famílias mais turbulentas da cidade, desde que não sejam aliadas dos Colonna. Os Cenci são desses, mas, em todo o caso, a presença desse homem nos arredores da nossa casa e, sobretudo, o interesse que ele parecia mostrar pela nossa vizinhança, não é nada tranquilizadora.
Tenho que me ir embora daqui disse Fiora. Quando é que o teu pai volta?
Dentro de dois dias, segundo parece, já que não recebi notícias. Mas, como hás-de sair daqui? E não me respondas: a pé. Ainda não estás em condições disso.
Tenho um ducado e também uma corrente de ouro com uma medalha que roubei aos que me mantinham em casa de Bórgia. Só preciso de uma montada, de um fato de rapaz e de umas tantas moedas para chegar a Florença. Lá, assim espero, estarei a salvo...
Isso deve ser possível. Mas, primeiro, vem comigo. Vamos já saber.
Levando Fiora pela mão, ela conduziu-a até à adega que a jovem visitara uns momentos antes. Ali, Anna fê-la sentar-se num banco e depois acendeu na chaminé uma braseira com pinhas que se inflamaram, crepitando. Enquanto esperava que se transformassem em brasas, Anna cortou uma mecha de cabelos à sua pensionista e colocou-a em cima de uma pequena pá de ferro, que levou ao fogo. Os cabelos encarquilharam-se e pouco depois só restavam umas tantas cinzas. Em seguida, inclinou-se sobre a tina na qual se reflectiam as três chamas do candelabro aceso em cima da mesa. Compreendendo que Anna procurava uma resposta para as perguntas que ambas faziam a si próprias, Fiora prendeu a respiração, olhando com curiosidade para as pupilas da jovem a dilatarem-se, ficarem enormes, de tal modo que já não conseguia desviar o olhar. Espiou a expressão daqueles olhos negros e pensou ler neles o terror...
Subitamente, Anna afastou-se da tina abanando a cabeça com irritação:
Não vejo nada! disse ela.
Tens o poder de ver o futuro?
Tenho, mas, no que te diz respeito, não consigo ver nada. Ela pareceu aborrecida, virou-se, levantou-se e caminhou pela sala com uma agitação que assustou Fiora:
Estás certa de não ter visto nada? perguntou ela docemente. Ou preferes não me dizer? Eu pensei ler o medo no teu olhar. Peço-te, seja qual for o meu destino, prefiro estar prevenida! Já passei por muita coisa, não me assusto com facilidade.
Após alguns instantes de silêncio, Anna pôs fim às suas idas e vindas e sentou-se ao pé de Fiora:
Talvez seja por tu estares demasiado perto de mim neste momento que eu não vejo nada senão um lugar escuro como uma prisão, uma multidão em fúria... e sangue!
O meu? perguntou Fiora, empalidecendo contra a sua vontade.
Não creio. Não me perguntes porquê, mas é como que uma voz secreta... só vi... novas provações pelas quais terás de passar.
A judia pegou na mão de Fiora, apertou-a entre as suas e semicerrou os olhos:
Não... Esse sangue não é teu, mas, mesmo assim, tu sofrerás... E há uma estrada para lá disso... Não sei onde vai dar.
Largando a mão da jovem, Anna ofereceu-lhe um sorriso cansado e foi buscar o castiçal para indicar que desejava regressar ao apartamento: