Выбрать главу

Se calhar, pensas que sou maluca suspirou ela. Mas eu estou aquém da minha reputação. De qualquer maneira, por vezes, tenho visões claras, mas sei que nunca atingirei nunca a clarividência da minha mãe... que morreu por causa disso.

Achar que és maluca? Certamente que não! Eu tinha um amigo em Florença, um médico vindo de Bizâncio, que, por vezes, via o futuro. Ele não sabia de onde lhe vinha esse dom. A tua mãe era assim?

A minha mãe era mais do que isso: uma daquelas grandes profetisas que o povo de Israel conheceu e que, talvez, venha ainda a conhecer. As tribos judias de Nápoles sabiam todas que Rebeca, mulher de Nathan, o rabino rico, estava inspirada pelo Espírito e, desde a minha mais tenra idade, senti por ela essa admiração e esse temor respeitoso que votamos pelos seres que não são deste mundo. Mal ousava chamar ”minha mãe” àquela grande mulher morena, muito bela, cujos olhos tinham sempre o ar de ver através de mim e cujo rosto, sempre grave, ignorava o sorriso. Ela marcou a minha infância de modo terrível, uma infância onde estava sempre presente algo parecido com um terror sagrado.

Ela morreu? murmurou Fiora, impressionada.

Morreu... e as chamas da fogueira para onde o Santo Ofício e a crueldade do Rei Ferrante de Nápoles a fizeram subir limitaram-se a acrescentar-lhe uma auréola flamejante e terrível que ainda hoje me assombra.

Vencida, talvez, por um silêncio há muito contido, Anna, a judia, contou, àquela desconhecida acolhida por caridade, mas na qual adivinhava uma irmã no sofrimento, o que fora a sua vida depois daquele momento terrível em que, rapariga de doze anos carregando as mesmas correntes que prendiam o seu pai, fora obrigada a ficar até ao fim em frente da enorme fogueira onde se consumia o corpo da sua mãe. Guardara desse momento uma recordação de horror que a fazia ainda tremer durante as suas horas de meditação, mas a sua alma ficara temperada para sempre, porque retirara do episódio uma imensa exaltação de orgulho. A mordedura do fogo, com efeito, não arrancara uma queixa a Rebeca, fechada no seu desdém e nas suas visões do Além. E a criança, sob as pálpebras fechadas que o calor fazia doer, rezara para que lhe fosse concedido saber morrer com a mesma coragem se, um dia, tivesse o mesmo destino.

Terminado o suplício, Nathan e a filha, poupados sabe-se lá por que milagre, foram arrastados pelos soldados de Ferrante até uma pequena baía a sul de Nápoles, onde atracavam secretamente os navios mercantes de Tunis. Como a frágil criança e o homem cansado não sucumbiram, é um dos mistérios da vontade humana e do ódio que, encerrado no coração dos mais fracos, pode levá-los mais longe do que os fortes. Vendidos como escravos, Nathan e a filha iriam suportar um novo calvário, mas, curiosamente, ao vendê-los aos tunisinos, os soldados de Ferrante salvaram-lhes a vida.

Perto da antiga Cartago vivia um rico judeu chamado Amos, parente de Rebeca e que beneficiava de um certo crédito junto do governador merínida da região. Chegado ao porto, Nathan

NT Merínidas dinastia de príncipes que expulsaram os Almoadas e reinaram em Marrocos de 1269 a 1550 Usavam o título de emir

pedira para falar com ele. Amos acorrera. Comprara sem dificuldade o pai e a filha e levara-os para a bela casa que possuía junto ao mar. Ali, os dois tinham reencontrado a força e a saúde.

No entanto, Nathan recusou a oferta de Amos, de os conservar junto de si. Queria regressar a Itália para preparar a sua vingança. A sua reputação era ali grande e, em Roma tinha muitos amigos na colónia judia. Além disso, sabia que não tinha nada a temer do Papa desde que não se lhe opusesse. Uma manhã, Anna e ele tinham embarcado em La Marsa, certos de encontrar, no fim do caminho do exílio, não só a protecção, mas também a possibilidade de refazer a fortuna.

Tinham-se passado sete anos desde esse regresso. Anna empregara-os no estudo e no desenvolvimento dos seus dons naturais. Junto dos velhos do gueto e daqueles que sabiam ler os astros, aperfeiçoara as lições de Rebeca e aprendera a arte temível dos filtros e dos venenos. E depois, limitara-se a esperar pelos clientes que, cada vez mais numerosos, tinham contribuído para a sua reputação, um nome que se dizia em voz baixa e que, uma noite, levara até sua casa a sobrinha do Papa.

Já vendeste, alguma vez, venenos? perguntou Fiora com uma ligeira hesitação.

Já. E sem remorsos. Cada vez que entreguei a alguém um licor, ou um pó mortal, senti alegria no coração, porque os padres são numerosos nesta cidade de papas e o meu veneno era, talvez, destinado a um deles. Odeio-os, odeio-os a todos, porque fazem parte daqueles que ajudaram Feirante a levar a minha mãe para a fogueira.

E não tens medo que um dia...

Que acendam uma para mim no Campo del Fiori? Não. Se conseguir matar Ferrante de Nápoles, irei para ela com alegria.

Compreendo bem o que sentes, porque também eu busquei a vingança, mas Deus chegou antes de mim...

E ficaste satisfeita?

Sim e não. Sim, porque a mão do Senhor caiu com mais força do que aquela que eu teria. Não, porque o desejo de vingança ainda está em mim. Enquanto a assassina do meu pai viver, não conhecerei a paz. Aliás, ela ainda me ameaça.

Ela está aqui, em Roma e tu queres ir para Florença?

Para chegar a ela teria que me entregar. Tenho de partir e tu sabe-lo bem, mas não renunciarei.

Eu ajudo-te, se quiseres!

A noite caía. Anna foi correr os cortinados e depois acendeu as velas.

Eu espero alguém, esta noite. Não te inquietes se ouvires barulho e, sobretudo, não te mexas.

E Khatoun?

Se ela vier, mando-a ter contigo.

No entanto, a noite passou sem que a jovem tártara aparecesse e a ansiedade fez companhia a Fiora até ao nascer do dia. Nas horas seguintes, Anna arranjar-lhe-ia, sem dúvida, os meios de fuga, mas o pensamento de se afastar de novo sem ter, ao menos, visto de novo Khatoun, era-lhe insuportável. Quando partira para França com Demétrios, Esteban e Léonarde, resignara-se com a separação porque acreditava que a sua pequena companheira de infância era feliz e ia a caminho do destino que escolhera. Mas deixá-la naquela situação de semiescravidão, de servidão privilegiada, talvez, mas de servidão, era-lhe intolerável. Evidentemente, Khatoun podia juntar-se a ela em Florença e fá-lo-ia, sem dúvida, se fosse livre, mas Dona Catarina não a deixaria, certamente, partir. Primeiro, porque o seu marido devia ter pago bom dinheiro por ela e depois porque, parecida naquilo com todas as grandes damas italianas, devia gostar muito daquela pequena personagem exótica. As tártaras eram raras e, por isso mesmo, mais preciosas.

Tinha, portanto, que se resignar: Anna, ao levar-lhe o pequeno-almoço, fizera-lhe mil recomendações acerca dos cuidados de que o seu ferimento ainda necessitava. Num saco colocara-lhe linho, ligaduras, um frasco de aguardente para limpeza e dois boiões de unguento. Em seguida examinara a sua paciente e, sobretudo, o ferimento em vias de boa cicatrização, sobre o qual estava colocado um penso espesso.

Parto esta noite, então? perguntou Fiora.

Partes. Uma hora antes do nascer do dia, levar-te-ei até à porta del Popolo, onde esperarás o momento de a transpor. Encontrei um macho e um fato de camponês. Com um pouco de sorte chegarás a Florença sem grandes dificuldades. O meu pai regressa amanhã e eu terei de estar aqui para o receber.

Mas uma sorte caprichosa decidira que Fiora não encontraria, nessa noite, o caminho interrompido e não veria nascer a aurora junto da porta del Popolo. Os sinos das inumeráveis igrejas e conventos acabavam de tocar para o último ofício e os criados tinham já aceso os potes de fogo nas suas jaulas de ferro à entrada dos palácios quando uma liteira fechada, escoltada por quatro cavaleiros, penetrou na rua e transpôs a abóbada que dava para o pátio.