Absolutamente nada, tendes razão. Pelo contrário, pode servir, sem querer, a minha política, a que entendo ter com os Médicis. Enfim... ela vale cem ducados, o que não é de desprezar!
Vós tendes à vossa disposição o tesouro da Igreja e desonrais-me por cem ducados? Sois um monstro, um ser infame, desprezível, e eu...
Catarina permaneceu ali de boca aberta e depois, com um grito dilacerante, curvou-se, levou as mãos ao ventre e começou a ofegar como se acabasse de fazer uma longa corrida. Khatoun precipitou-se para a amparar, com os olhos arregalados de inquietação, mas Fiora ainda tinha na memória a recordação do seu parto para não reconhecer os sintomas. A jovem encarou friamente Riario:
Devíeis mandar que conduzissem a condessa ao seu quarto! A criança que ela espera não tarda...
Achais... achais que sim?
Fiora ofereceu a si própria o luxo de um sorriso. Aquele senhor todo bem-vestido acabava de mostrar, sob a sua carapaça, o simples mortal que era, ao mesmo tempo assustado e inquieto no momento da chegada do seu primeiro filho. Pela primeira vez na sua vida foi, talvez, natural... e até humano.
Tenho a certeza! disse ela suavemente. Ainda há sete meses passei pelo mesmo.
Mas ele não a escutava. Aos seus apelos furiosos, um grupo de mulheres surgiu, apoderou-se da condessa e, com toda a espécie de precauções, levou-a pela escadaria acima. Khatoun não as seguiu. Catarina já não precisava dela e a tártara decidiu ficar junto de Fiora. Esta sorriu-lhe e beijou-a:
Vai também, Khatoun. Tu estás ao serviço dela...
Não... Eu continuo a pertencer-te. Quero ficar ao pé de ti.
Para fazer o quê? Eu não sei o que vai ser de mim...
Eu digo-vos disse Riario que regressava, deixando as criadas encarregarem-se de Catarina, que ouviam gritar cada vez mais debilmente à medida que subiam a escadaria. Ides tomar conhecimento com o castelo de Saint-Ange. Se vos tivessem metido lá aquando da vossa chegada, como eu queria, teríamos evitado muita confusão...
E eu teria evitado ao Papa uma soma de cem ducados. Devíeis agradecer-me.
Surpreendido, Girolamo Riario olhou para ela com um olhar estúpido, em seguida, subitamente, desatou a rir com grandes gargalhadas e postou-se diante da jovem com os punhos nas ancas.
Mas, ela tem razão, a marota! Sabes, minha bela acrescentou ele estendendo para a face de Fiora um grande dedo que ela evitou como se fosse uma vespa tu interessas-me cada vez mais e quando o meu tio tiver acabado contigo, talvez,possamos...
Absolutamente não! cortou Fiora. Vós não me interessais. Acabemos com isto e já que decidistes meter-me na prisão, vamos embora e não se fala mais nisso!
Não, minha senhora, suplico-te! exclamou Khatoun, que desatou a soluçar enquanto se agarrava ao braço de Fiora. Não o provoques. Não te podem meter na prisão.
Chega berrou Riario. Vai ter com a condessa, se não queres que te levem lá a golpes de chicote! E não esqueças que é a mim que pertences. Paguei por ti muito dinheiro. Levem-na!
Dois criados agarraram na pequena escrava que chorava e se debatia, suplicando que a deixassem seguir o mesmo destino da sua antiga senhora.
Não lhe façais mal disse Fiora, comovida. Ela é tão nova e tão frágil. Acabará por me esquecer.
Não te atormentes por causa dela; a minha mulher gosta mais dela do que dos cães, ou da ama negra. Mas, no fundo, a rapariga tem razão. Por que te hei-de meter na prisão? Aqui não faltam quartos. Ficarias melhor num deles enquanto esperas que te conduza perante o Santo Padre.
À medida que se ia familiarizando, o seu tom natural ia vindo ao de cima e reaparecia o funcionário rabo-de-saia alfandegário dos cais de Savone. O verniz estalava tanto mais depressa quanto mais longe Riario ia ficando dos ouvidos da sua mulher. Rígida de desprezo, Fiora dardejou-o com um olhar gelado:
Qualquer prisão é preferível à hospitalidade de um homem como vós. Por conseguinte, agradeço-vos que mantenhais a devida distância de mim. Eu não sou uma das vossas cortesãs, mas sim a condessa de Selongey, viúva de um cavaleiro do Tosão de Ouro!
Belo nome! Aproveita-o enquanto é tempo! Algo me diz que não vais poder usá-lo por muito mais tempo... Mas já que a senhora Condessa prefere a prisão acrescentou ele com uma saudação grotesca vou ter a felicidade de a conduzir eu próprio à cela!
CAPÍTULO X
CARLO
Foi precisa muita coragem da parte de Fiora para não desanimar com a fúria e o desencorajamento que se apoderaram dela quando, enquadrada por guardas, seguiu Riario ao longo da interminável rampa em espiral que subia pelo interior do castelo de Saint-Ange e ia dar aos terraços, aos aposentos do governador e também às prisões. Desde a sua chegada a Roma que não fazia outra coisa senão deslocar-se em redor da fortaleza papal e se, finalmente, estava nela confinada era porque lhe estivera, sempre, destinada. Tantos esforços para chegar ali! Dava, quase, vontade de rir, se o episódio que se desenrolara em casa de Anna, a judia, não tivesse inspirado à jovem reflexões estranhas. Por que razão insistira a condessa Catarina em levá-la para sua casa quando se dispunha a abandonar Roma? Por que razão, sobretudo, a escutara e seguira? A mulher de Riario podia muito bem tê-la posto ao corrente do perigo que ameaçava os Médicis levando-lhe os meios para os prevenir sem necessidade de a levar para sua casa? Teria agido preocupada com a sua saúde, ou levada, por uma mão muito mais segura, para uma armadilha sabiamente estendida? Uma armadilha na qual era impossível meter Khatoun. A pequena tártara não tinha, certamente, nada que se lhe reprovasse, senão, talvez, ter confiado à sua nova patroa o nome da amiga que ia visitar!
O cortejo desembocou, por fim, num terraço encimado por um caminho de ronda ameado onde velavam alguns canhões. Uma casa da guarda, iluminada do interior, difundia uma luz amarela que não diminuía em nada o lado sinistro do local. Uma luz débil, sem dúvida uma vela, aparecia nas janelas dos aposentos do governador, em frente do qual dois soldados, apoiados nas suas lanças, estavam meio adormecidos, ameaçando a cada instante cair sobre o monte de balas de pedra que esperavam um ataque hipotético. Sobre tudo aquilo reinavam, bem erguidos contra o céu e quase aos pés do Arcanjo, os aposentos reservados ao Papa no caso de esses acontecimentos desagradáveis o forçarem a procurar um refúgio. Na muralha havia um balcão embutido, que lhe dava uma aparência mais agradável
O aparecimento do conde Riario acordou a casa da guarda e as sentinelas. Sabendo que o governador, bastante doente, estava acamado, ele pediu para chamarem o vice-governador, um albanês chamado Jorge, que foram buscar a correr.
Este apareceu após alguns instantes e Fiora pensou que raramente vira uma figura mais patibular. Não tanto pelo rosto bexigoso, pelos cabelos gordurosos, pelo nariz achatado por cima de bigode à mongol e pela boca demasiado húmida, mas pelas fendas delgadas por trás das quais se filtrava o inquietante brilho do olhar. Aquele homem era cruel e falso. Quanto à saudação que concedeu ao sobrinho do Papa, era uma obra de arte de subserviência.
Estavas na prisão notou este. A esta hora da noite?
Sim. Prenderam, há pouco, mais um francês, um peregrino, por assim dizer. Estava numa taberna do Campo del Fiori. O patrão preveniu o Soldan, que o prendeu não sem alguma dificuldade, aliás: foram precisos doze homens para o conseguirem, porque ele deu cabo de três.
Curioso peregrino! Por que razão chamaram o Soldan?
O homem estava a fazer perguntas. Procurava uma mulher do seu país que tinha vindo rezar junto do túmulo do Apóstolo, parece, e que desapareceu há vários meses. Uma mulher... muito bela.