Com os olhos arregalados pelo estupor, Riario olhava para aquela mulher que lhe fazia frente, ameaçadora, terrível, vingativa. Ele adivinhou obscuramente que ela era da raça das feras reais e que entre elas e ele próprio, príncipe de pacotilha, haveria sempre um abismo intransponível. Supersticioso, pensou ver brilhar nos olhos dela a chama sombria das profetisas antigas e sentiu um arrepio ao longo da espinha.
Liberta-o! ordenou ele ao albanês que, mudo e aparentemente tão insensível quanto uma estátua, assistira à cena.
Em seguida, virando-se para a jovem:
Aceitais casar?
Nas condições que acabo de impor, sim!
Muito bem. Vamos mandar este homem para a prisão, onde ficará até ao casamento. O que acontecerá em breve. E agora, vinde.
Não ides fazer isso? exclamou Mortimer cujo carrasco lhe friccionava os punhos e os tornozelos com a solicitude de um bom criado de quarto.
Não tenho escolha disse Fiora suavemente. Deixar que vos matassem seria uma coisa estúpida, porque o meu filho terá necessidade de... todos aqueles que me pertencem. Além disso, voltaremos a ver-nos... talvez mais tarde!
A capitulação valeu a Fiora terminar a noite num dos quartos destinados ao séquito do Papa e não numa das masmorras que povoavam as entranhas da fortaleza. As instalações eram espartanas, mas, pelo menos, tinha à sua disposição uma cama verdadeira, utensílios de toilette, água e sabão. Terrivelmente cansada, contentou-se em estender-se por cima da colcha sem mesmo se dar ao trabalho de se despir.
Mas não dormiu muito, já que os últimos acontecimentos da noite lhe tinham tirado o sono de que o seu corpo tanto necessitava. O seu ombro ferido doía-lhe, mas não tinha nada para mudar o penso, já que a ligeira bagagem que Anna lhe dera ficara na liteira de Catarina. Só lhe restava a bolsa de Dona Juana, sempre pendurada do seu cinto. Vasculhando no seu interior para tirar o lenço, os seus dedos voltaram a encontrar o pequeno frasco vestido de chumbo que a judia lá tinha metido. A jovem tirou-o e olhou para ele por um momento. Anna dera-lho para que ele fosse o instrumento da sua vingança contra Hieronyma, para que esta fosse eliminada para sempre. Agora, Fiora pensava que talvez ele pudesse servir para a sua libertação, o último socorro à beira do abismo para onde iria cair e onde se perderia para sempre. Para salvar Mortimer, entregara-se aos seus piores inimigos, mas, por outro lado, o escocês correra grandes riscos para a salvar. Não seria indigno da sua parte deixar-se morrer diante dos seus olhos e daquela maneira abominável? Além disso, sabia agora que, em França, não a tinham esquecido. O Rei dera-se ao cuidado de enviar duas delegações, além de Mortimer. Era encorajante, mas toda a força de que ele dispunha estava demasiado longe e os seus mensageiros deviam ter tido um destino trágico. Luís XI receberia, um dia qualquer, uma missiva hipócrita, anunciando-lhe um ou vários acidentes estúpidos. Um dia qualquer, uma vez ela casada com Cario Pazzi.
Uma única coisa a impediu de desarrolhar o frasco e beber o seu conteúdo de uma só vez: não era um veneno rápido. Anna especificara que a sua ”inimiga morreria no prazo de uma semana sem que ninguém conseguisse saber de que doença”. Com um suspiro, Fiora voltou a colocar o objecto no seu lugar. Haveria de encontrar, mais tarde ou mais cedo, uma faca qualquer ao alcance da mão, ou, melhor ainda, uma muralha alta de onde se precipitar, um rio onde se afogar... Porque, decididamente, não fora feita para ser feliz e já que a maldição que presidira ao seu nascimento continuava a fazer das suas, seria bem melhor para toda a gente e sobretudo para o seu filho, que essa fatalidade desaparecesse com ela.
Coisa extraordinária, uma vez tomada aquela fúnebre decisão, sentiu-se melhor, quase livre. Os batimentos desordenados do seu coração apaziguaram-se, o carrocel infernal que lhe girava no cérebro deteve-se e ela, finalmente, adormeceu.
O som dos sinos, tocando todos ao mesmo tempo, acordou-a. A jovem viu que o Sol já ia alto e compreendeu que estava alguém junto dela quando o seu olhar caiu sobre uns dedos negros que seguravam umas contas de âmbar. O homem olhou para o rosto que, subitamente, se iluminou com um grande sorriso:
Dormiste bem? Domingo sente-se feliz por te ver de novo. Estava preocupado contigo.
Porquê? Por ter conseguido escapar ao teu patrão?
Não, mas até um servidor fiel pode sentir amizade pelo ser que é confiado à sua guarda.
Como é que estás aqui?
Ordens, claro. Domingo tem de te preparar para a audiência que o Santo Padre te vai conceder ao fim do dia.
Não me lembro de ter pedido uma audiência. Mas, diz-me: que quer dizer este carrilhão? Até estou surda...
Não és a única, mas, esta manhã, a nobre condessa Riario deu à luz uma filha a quem vai ser dado o nome de Bianca. O Santo Padre está feliz e, por conseguinte, Roma está em festa. Não percebo porquê acrescentou o núbio abanando gravemente a cabeça envolta num turbante. Uma rapariga! Tanto barulho por uma rapariga! Mas, regressemos à tua pessoa! Não estás com boa cara, sabes?
Não me admira! Fui ferida e ainda estou fraca. Além disso, não tenho nada para tratar o ferimento.
Deixa, que Domingo trata disso! Para já, tiremos esses farrapos negros que te dão um ar de insecto maligno!
Ela deixou-se despir sem protestar. Tinham conhecido ambos, na carraca, uma longa intimidade e Fiora habituara-se a não ver um homem naquele bom servidor que, aliás, já não era. O delgado ferimento inflamara um pouco. Domingo limpou-o com aguardente cuja queimadura marejou de lágrimas os olhos da jovem e depois colocou-lhe um penso limpo. Feito aquilo, deixou-a fazer a sua toillete, anunciando que ia buscar-lhe comida. Antes de sair, estendera sobre uma arca roupa branca bordada, meias de seda, um vestido de veludo verde com um bordado de seda branco como a saia de baixo e umas chinelas a condizer. Uma grande capa do mesmo veludo e uma grande coifa dourada destinada a prender a cabeleira completavam aquela toillete que nenhuma mulher teria vestido com prazer, e Fiora só lhe concedeu um olhar distraído. Teria preferido o fato de camponês, que a teria protegido ao longo do caminho de Florença!
No entanto, sentiu-se menos abatida quando, lavada, vestida e penteada, se instalou diante da refeição copiosa que Domingo lhe trouxera. Fora sempre assim nos períodos difíceis da sua vida: tinha mais apetite do que em tempos normais. Assim, sabendo a dimensão do adversário que iria defrontar naquela noite, fez as honras ao que lhe era servido.
Contrariamente ao que supunha, não foi para a sala onde fora recebida a primeira vez que o mestre-de-cerimónias Patrizi dirigiu Fiora, antes para a biblioteca. Sisto IV sentara-se lá numa espécie de cadeira de marfim e, com umas lunetas encavalitadas no nariz, lia um grosso livro escrito em grego, pousado junto dele numa grande estante e seguia as linhas com a ajuda de um pequeno ponteiro de ouro. O Papa interrompeu a leitura quando Patrizi introduziu Fiora e a levou ao longo da grande sala até uma almofada disposta aos pés do Papa e na qual a fez ajoelhar como o exigia o protocolo. Mas, de repente, Sisto IV começou a ler em voz alta:
”Tentar lutar contra os males enviados pelos deuses é dar provas de coragem, mas também de loucura; nunca ninguém poderá impedir o que deve, fatalmente, acontecer...”
Em seguida, virando a cabeça para a jovem, perguntou, tão naturalmente como se tivessem estado a conversar na véspera ou algumas horas antes:
Que pensais deste texto, Dona Fiora? É de uma grande beleza, não é verdade?
Se Vossa Santidade o diz, deve ser. Pela minha parte, não gosto muito de Eurípedes e menos ainda do seu Hércules furioso. Prefiro antes Esquilo: ”Ah! triste sorte a dos homens: a sua felicidade parece-se com um esboço; vem a desgraça, três golpes com uma esponja húmida e lá vai o desenho...” Há anos que o desenho da minha vida está meio apagado e eu não pude fazer outro.