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Pára, Mathieu! gritou Philippe. Vai-te embora. Não tens sorte nenhuma!

É a tua que me interessa berrou Prame, brandindo sempre a sua espada.

O carrasco, com efeito, não se tinha mexido, já que a lei o impedia de tocar num homem cuja vida não lhe tinha sido entregue pela justiça.

Vamos, cobardes! Acordai! Ajudai-me!

Os seus olhos negros e vivos olhavam para todos os lados, espreitando os turbilhões que o seu discurso acabava de criar na multidão, esperando a vaga salvadora, mas só um grupo de soldados corria para ele, rodeando o cadafalso. Sobre a tribuna, Georges La Trémoille levantara-se e vociferava ordens que ninguém ouvia, porque agora os gritos erguiam-se um pouco por toda a parte. Alguém gritou: ”Misericórdia! Misericórdia por Selongey!”, mas ninguém se mexeu.

Vai-te embora, Mathieu! gritou Philippe desesperado. Vais fazer com que te matem e eu preciso que vivas!

Mathieu de Frame não queria ouvir. Começou a esgrimir com os soldados que tinham subido para o cadafalso com um ardor nascido da raiva. Infelizmente, não podia enfrentar sozinho um grupo sólido. Num instante foi agarrado, atado e transportado, como um simples fardo, aos ombros de quatro homens. Não o tinham amordaçado e ele berrava como um possesso, insultando a multidão que recusara ajudá-lo.

Estáveis farto do duque Carlos, bando de poltrões! Ides saber quanto pesa a mão do Rei de França! Adeus, Philippe, adeus! Diz a São Pedro que em breve estarei junto dele.

O jovem desapareceu na rue Saint-Jean e o condenado esforçou-se por enxugar, com um movimento do ombro, a lágrima que lhe corria ao longo da face. Sobre a tribuna, o governador francês voltara a sentar-se e fez um gesto. Chegara a hora de morrer.

A carroça encostou à plataforma. O monge ajudou o condenado a descer, mas Philippe recusou a ajuda para subir os degraus. Chegado ao alto, atravessou rapidamente o espaço vestido de negro para se aproximar o mais possível da tribuna.

Deixai-o viver, senhor governador! É meu amigo e queria provar-mo. Sabia muito bem que não tinha hipótese nenhuma.

Tentou sublevar o povo. É uma prova de amizade que merece a morte!

É crime querer continuar a ser o que somos? Borgonheses?

A Borgonha esqueceu que não passa de um apanágio da coroa de França. A vossa pretensa independência não passava de traição e os vossos duques provaram-no aliando-se aos Ingleses. O Rei retomou os seus direitos!

Os seus direitos?

Imprescritíveis! Dentro de poucos dias a vossa duquesa vai casar com o filho do Imperador. Tendes assim tanta vontade de ser Alemães? Nós, os Franceses, não o permitiremos! Faz o teu trabalho, carrasco!

Pensai em Deus, meu irmão! murmurou o monge que se tinha juntado a Philippe e oferecia aos seus lábios um pequeno crucifixo de madeira negra sobre o qual, quase maquinalmente, ele os pousou.

O condenado sentiu-se invadido por uma grande tristeza. Batera-se, portanto, por um logro! Presa entre o Império e a França, a Borgonha deixava de ter qualquer direito a uma identidade própria. Quer se tornasse pertença do império, ou província de França, já não tinha, de facto, qualquer importância, porque já não o veria e quando, dentro de pouco tempo, o metessem na sua tumba, a poeira que o envolveria não passaria de poeira.

Recusando a venda que o carrasco lhe oferecia, o condenado abraçou com o olhar a praça enxameada de rostos tensos, as grandes árvores e, mais alto, o céu azul, que raiava o voo rápido de uma andorinha. Depois, com passo firme, Caminhou na direcção do cepo, concedeu um sorriso ao executor que, de joelho em terra, lhe pedia perdão e, por sua vez, ajoelhou-se.

Fiora! murmurou. Amei-te e amo-te tanto. Não me esqueças!

Sem tremer, pousou o pescoço sobre o rude cepo de madeira e fechou os olhos.

O carrasco ergueu a espada...

CAPÍTULO II

A CASA DAS PERVINCAS

Fiora achava que não havia no mundo lugar mais maravilhoso do que o seu solar nas margens do Loire. Amara-o logo que o vira na curva do caminho de terra que, fora das muralhas de Tours, ia dar ao priorado de Saint-Côme. No entanto, fora numa manhã fria de fins de Janeiro, em que a Natureza, tolhida pelo Inverno, não estava no seu melhor. Mas como a casa era bela!

Feito de pedra calcária e tijolos rosados, o edifício, quadrado e com duas pequenas torres octogonais nos dois cantos virados para a frente, brilhava com todas as suas janelas de vidros coloridos, que reflectiam a luminosidade das velas acesas no interior. Em redor estendia-se um jardim que, de um lado, descia até ao rio e do outro, se perdia num bosque que ia até às muralhas de Plessis-lès-Tours, o castelo real, onde, na véspera, Fiora e os seus companheiros tinham sido recebidos com a maior das hospitalidades. Mais longe, a norte, a ilhota que acolhia o antigo priorado estava envolta numa bruma lilás de onde emergia misteriosamente o campanário, a meio caminho do céu, semelhante ao desenho piedoso de um qualquer pintor angélico.

O carreiro que ia dar ao pequeno castelo era mesmo à conta para uma carroça e devia ser muito antigo, porque entrava profundamente no solo entre taludes cobertos de erva onde já apareciam as primeiras primaveras e violetas. Velhos carvalhos erguiam-se de ambos os lados, apontando para o céu azul-claro os seus ramos cinzentos cobertos de líquen. Formavam uma espécie de abóbada que devia, no Verão, ser extremamente fresca e para lá deles a casa brilhava de amizade, parecendo abrir os braços à viajante em busca de refúgio. Depois das brumas geladas da Lorena e das neves infinitas de Champagne, as doces ondulações do vale do Loire, o seu ar mais leve e o esplendor majestoso das suas águas azuladas dava aos viajantes a impressão de passarem de um purgatório austero para a morada dos tranquilos eleitos. A cólera e o desgosto da jovem tinham-se apaziguado um pouco. Fiora já não tinha o rosto fechado, tenso, nem os olhos pesados, cheios de nuvens sombrias, que trouxera de Nancy, e Léonarde agradecera silenciosamente a Deus.

Por mais que vivesse, a velha solteirona teria sempre presente na memória, dois dias após o funeral do Temerário, a imagem de Fiora entrando no seu quarto mal aquecido, os pés nus sobre as lajes quadradas, apenas vestida com um lençol que aconchegava contra o peito, a massa negra dos seus cabelos caindo-lhe sobre os ombros, mas com o olhar faiscando. Sem, sequer, se dar ao trabalho de dar os bons-dias, ordenara, com uma voz trémula de cólera, que se fizessem as malas e que fossem ver se o enviado do Rei de França, Douglas Mortimer, ainda estava no palácio. Se fosse o caso, seria preciso pedir-lhe que mandasse preparar os cavalos para partirem dali a uma hora.

Naturalmente, Léonarde não se rendera sem luta. Ver a sua filha eleita irada daquela maneira, quando a cria na maior das doçuras, na maior das alegrias do amor reencontrado, era a última coisa que esperava. Pedira-lhe explicações. Que não lhe foram dadas de imediato.

Aquele pergaminho que me mostrastes, em Granson, aquele título de propriedade de um pequeno castelo doado pelo Rei Luís, ainda o tendes?

- Era o que faltava, se o tivesse perdido! Coisas dessas guardam-se preciosamente. Trago-o cosido dentro do vestido. Mas recordo-vos que não o queríeis.

Mudei de opinião. Aceito. É para lá que vamos!

Mas... o vosso marido? Messire Philippe?

... irá lá ter quando decidir viver comigo!

Não fora possível arrancar-lhe mais nada, mas, conhecendo o seu ”cordeirinho” como conhecia, Léonarde, deixando Fiora a atulhar raivosamente uma arca de couro com os poucos bens terrenos que a sua longa peregrinação nos calcanhares do defunto duque de Borgonha lhes havia deixado, lançara-se em busca de Mortimer. Encontrara-o no momento em que ele se preparava para partir, mas não teve qualquer dificuldade em convencê-lo a esperar por elas e escoltá-las até junto de Luís XI. Fiel a si próprio, o escocês não fizera qualquer comentário, contentando-se em erguer uma sobrancelha. Por um certo pestanejar dos seus olhos azuis, a velha solteirona compreendera que não lhe desagradava nada levar ao seu senhor a jovem florentina por quem ganhara amizade.