Péronelle era redonda como uma maçã, com um rosto de linhas doces cuja beleza residia nos dois grandes olhos da cor exacta da pervincas que tinham dado o nome à casa e Étienne tivera de se impor mais de uma vez para impedir os galãs de lançarem piropos àqueles olhos. E saíra sempre vencedor, porque era tão quadrado quanto ela era redonda, e o uso alternado da cana-de-pesca, da enxada e do machado tinha-o dotado de músculos com os quais era preciso contar.
Longe de os entristecer, a chegada de Fiora e de Léonarde provocou-lhes uma mistura de prazer e alívio. Não sabiam ao certo a quem o Rei dera a Casa das Pervincas. Tinham-lhes dito, apenas, que se tratava de uma jovem a quem Luís XI queria muito. E o casal temia que se tratasse de uma favorita qualquer, tanto mais insuportável quanto não teria saído, certamente, da coxa de Júpiter e que a idade do Rei teria tornado arrogante. Que Luís XI tivesse arranjado uma amante quando jurara não tocar em mais nenhuma mulher senão na sua o que devia acontecer de vez em quando, já que a Rainha Carlota, vivendo todo o ano no castelo de Amboise, a umas boas seis léguas de Plessis já era suficientemente preocupante para aquelas duas boas almas.
A beleza da recém-chegada, a sua gentileza e o rosto respeitável de Léonarde tiraram-lhes desde logo, de cima dos ombros, a maior das suas preocupações e Douglas Mortimer, que eles conheciam bem e que o Rei encarregara de acompanhar a nova proprietária, tirou-lhes as restantes: Dona Fiora era a filha de um antigo amigo do Rei Luís e este decidira tomá-la sob a sua protecção após as numerosas infelicidades de que fora vítima. O mais grave era, talvez, ter casado, em tempos, com um senhor borgonhês demasiado amigo do defunto Temerário para aceitar tornar-se francês e que, a despeito das orações a jovem, decidira pegar de novo em armas e partir à aventura.
Assim, Dona Fiora, desolada, decidira refugiar-se junto do seu velho amigo cuja confiança recusava trair.
Um discurso bastante raro da parte do escocês, que, geralmente, não pronunciava mais de três palavras por hora e que tinha impressionado fortemente Étienne, muito mais falador do que ele, e provocado algumas lágrimas na sensível Péronnelle. Posto o que o casal adoptou Fiora e fez os impossíveis para que esta sentisse a felicidade que era viver na região de Tours. Com tanto mais entusiasmo quanto o acordo entre Péronnelle e Léonarde fora imediato a despeito de alguma diferença de idades. Muito piedosas tanto uma como outra, souberam entender-se na arte da lida da casa porque, se bem que Léonarde tivesse reinado em tempos num palácio florentino e numa villa sumptuosa, era capaz de pôr um freio na supremacia dos seus talentos e admirar de boa-fé a especialidade em que Péronnelle era mestra, isto é, a arte culinária. Por seu lado, Péronnelle dera o justo valor ao tacto da velha solteirona, entregara-lhe as chaves das arcas e dos armários e tirava proveito dos conhecimentos trazidos do outro lado dos Alpes pela sua companheira. Por outro lado, não se cansava de a ouvir evocar as maravilhas da fabulosa villa de Florença, casa que ela nunca teria oportunidade de visitar. Não era raro ver, na cozinha, Léonarde a fiar enquanto descrevia à sua nova amiga, ocupada a mexer um molho, os sons, as cores e os odores dos mercados das sextas-feiras. Outras vezes produzia-se o contrário e Péronnelle iniciava Léonarde nos usos e costumes da região de Tours, assim como nos mexericos e histórias que percorriam a cidade e o campo, porque tinha uma espécie de dom, que era o de estar sempre ao corrente do que se passava nos arredores.
Incontestavelmente, Péronnelle era faladora e, por esse motivo, recordava um pouco a Léonarde a gorda Colomba, que era ao mesmo tempo a sua melhor amiga e a sua melhor fonte de informações em Florença. Mas o débito tumultuoso da governanta dos Albizzi era muito diferente do de madame Le Puellier. Esta era uma contadora nata, que sabia dar sal e pimenta à mais banal das disputas entre dois camponeses no mercado do bairro de Notre-Dame Ia Riche. Além disso, a sua linguagem, despojada de qualquer vulgaridade, tinha uma certa pureza e elegância, e Léonarde não se fez rogada, cumprimentando-a por isso.
Isso deve-se disse Péronnelle ao facto de eu ter nascido nesta região. Nós, os de Tours, somos conhecidos em todo o reino como os que melhor falam a nossa língua. Mas não me pergunteis de onde nos vem isso, seria incapaz de vos responder. No entanto, penso que é um pouco por essa razão que o nosso bom sire, o Rei Luís, gosta tanto de estar, não apenas com os grande burgueses de Tours, mas também com as pessoas mais humildes, como o meu Étienne e eu.
Léonarde adquiriu um novo respeito pela sua companheira, assim como um pouco mais de amizade por aquela doce região onde era tão bom viver. Cada vez gostava mais dela e acabou por temer os dois acontecimentos susceptíveis de perturbar a sua beatitude: a chegada súbita de Philippe para levar a sua mulher de boa vontade ou à força para a sua fortaleza borgonhesa e a realização da ameaça proferida por Fiora: partir para Roma para pedir ao Papa a anulação do seu casamento. O facto de a jovem parecer gostar da sua nova casa e nunca pronunciar o nome do seu marido não a tranquilizava nada: conhecia demasiado bem a sua impulsividade e a sua necessidade de estar sempre em movimento, inerente à sua natureza.
Assim, quando, certa manhã do mês de Março, Fiora, ao levantar-se, e recusando a sua malga de sopas de leite, declarou que estava enjoada e desmaiou graciosamente entre os pés de Léonarde e de Péronnelle, as duas mulheres olharam uma para a outra com os olhos brilhantes como velas e caíram nos braços uma da outra antes, sequer, de lhe prestar socorro.
Um bebé! clamou Péronnelle. A nossa querida senhora está à espera de um bebé! Louvados sejam Nosso Senhor e Nossa Senhora, que abençoaram esta casa!
Por seu lado, Léonarde chorou de alegria e uma vez a futura mãe instalada confortavelmente no seu leito, correu ao priorado de Saint-Côme para ali depositar uma esmola e queimar algumas velas. A demente viagem a Roma ficava fora de questão, já que a união entre Philippe e Fiora ia dar fruto.
A notícia, quando recobrou a consciência, deixou Fiora estupefacta. O pensamento de que Philippe, durante as noites apaixonadas de Nancy, lhe tivesse feito um filho, nunca lhe tinha passado pela cabeça. O seu amor por ele estava escondido no fundo do seu coração, sob uma camada de rancor e ciúme tão espessa, que lhe acontecia esquecê-lo. E eis que nascia um ramo desse amor sufocado, um ramo que ia germinar durante a Primavera que se anunciava e o Verão que se seguiria, para florir quando amadurecessem as uvas. E que os laços que a uniam a Philippe se iam tornar demasiado fortes, tão fortes que só a sua vida os cortaria.
O mal-estar que se apoderara dela abandonou logo de seguida, como uma vaga que se retira. A casa estava tranquila, quente e silenciosa, à excepção dos pequenos sons que vinham da cozinha onde Péronnelle tocava, com as suas caçarolas de cobre, uma música triunfal. Então, Fiora levantou-se e, sem sequer se dar ao trabalho de calçar as pantufas, foi até uma alta e estreita janela de Veneza, muito semelhante à que o seu pai mandara vir para ela e que era a maior riqueza do seu quarto. Ali, deixou cair a camisa e examinou o seu corpo com a ideia de que, talvez, encontraria uma mudança qualquer, mas a sua cintura continuava fina, o ventre liso e os seios exactamente os mesmos da véspera.