Tyrer obedeceu.
— Obrigado. — Babcott começou a costurar. Com extrema precisão. — o fígado não foi afetado. Sofreu uma pequena contusão, mas não há nenhum corte. Os rins também estão bem. Ichiban... é como se diz “muito bom” em japonês Tenho uns poucos pacientes japoneses. Em troca do meu trabalho, peço que me ensinem palavras e frases. Poderei ajudá-lo a aprender, se quiser.
— Eu... isso seria maravilhoso... ichiban. Lamento ser tão inútil.
— Não está sendo. Detesto fazer isto sozinho. A verdade é que me apavora. Pode parecer estranho, mas é o que acontece.
Tyrer olhou para o rosto de Struan. Não havia nenhuma cor ali. Uma hora antes, era avermelhado e forte, agora estava distendido, com uma aparência sinistra, as pálpebras adejavam de vez em quando. Era estranho, pensou ele, era estranho como Struan parecia extremamente nu. Há dois dias eu nunca ouvira sequer o seu nome, e agora estamos ligados como irmãos, agora a vida é diferente, será diferente para nós dois, quer gostemos ou não. E sei que ele é corajoso, enquanto eu não sou.
— Ah, você perguntou sobre o holandês — disse Babcott, mal escutando a si mesmo, toda a sua atenção na cirurgia. — Desde 1640, mais ou menos, o único contato dos japoneses com o mundo exterior, além da China, tem sido com os holandeses. Todos os outros eram proibidos de desembarcar no Japão, em particular os espanhóis e portugueses. Os japoneses não gostam de católicos, porque tentaram se intrometer em sua política, no século XVII. Houve um momento, pelo que dizem, em que o Japão quase se tornou católico. Sabia disso?
— Não, senhor.
— Por isso, os holandeses eram tolerados, porque nunca trouxeram missionários para cá, apenas queriam comerciar. — Ele parou de falar por um momento, mas os dedos continuaram a dar os pontos pequenos e meticulosos. — Assim, uns poucos holandeses, homens, nunca mulheres, receberam permissão para ficar, mas apenas com as mais severas restrições, numa ilha artificial de pouco mais de um hectare, na enseada de Nagasáqui, chamada Deshima. Os holandeses obedeciam a qualquer lei imposta pelos japoneses, submetiam-se a tudo... e foram se tornando cada vez mais ricos. Traziam livros, quando eram permitidos, negociavam, quando era permitido, e assumiram o comércio com a China, que é essencial para o Japão... prata e sedas chinesas em troca de ouro, papel, laca, chopsticks... sabe o que é isso?
— Sei, sim. Passei três meses em Pequim.
— Ah, desculpe, eu tinha esquecido. Mas não importa. Segundo os documentos holandeses do século XVII, o primeiro dos xóguns Toranaga, o equivalente deles a imperadores, decidiu que a influência estrangeira era contra os interesses do Japão, e por isso fechou o país. Decretou que os japoneses não podiam construir navios oceânicos, nem deixar o país... qualquer um que o fizesse não poderia voltar, e se voltasse seria morto ao desembarcar. Essa ainda é a lei.
Os dedos pararam por um instante, quando o delicado fio partiu, e ele praguejou.
— Dê-me a outra agulha. Não consigo arrumar um categute decente, embora esta seda seja bem fina. Tente passar o fio por uma das outras agulhas, mas lave as mãos primeiro, e torne a lavar depois que acabar. Obrigado.
Tyrer sentiu-se contente por ter alguma coisa para fazer, e virou-se no mesmo instante, mas seus dedos não funcionavam direito. Sua náusea voltara a aumentar, a cabeça latejava.
— Estava falando sobre os holandeses.
— Ah, sim. O relacionamento era cauteloso. Holandeses e japoneses começaram a aprender uns com os outros, embora os holandeses estivessem oficialmente proibidos de aprender japonês. Há cerca de dez anos, o Bakufu abriu uma escola de língua holandesa...
Os dois ouviram passos apressados se aproximando. Uma batida na porta. O suado sargento-granadeiro estava parado ali, advertido a nunca entrar no meio de uma operação.
— Desculpe interromper, senhor, mas quatro dos desgraçados nojentos estão vindo pela estrada. Parece uma delegação. E todos são samurais.
O médico não parou de costurar.
— Lim está com eles?
— Está, sim, senhor.
— Leve-os para a sala de recepção e diga a Lim para cuidar deles. Irei até lá assim que puder.
— Certo, senhor.
O sargento lançou um último olhar para a mesa de operações e se afastou às pressas. Babcott completou outro ponto, deu o nó, cortou o fio, enxugou o ferimento sangrando e recomeçou.
— Lim é um dos nossos assistentes chineses. Nossos chineses fazem a maior parte do trabalho físico, mas quase não falam japonês, e também não merecem muita confiança.
— Nós... aconteceu isso também... descobrimos a mesma coisa em Pequim. São uns tremendos mentirosos.
— Os japoneses são piores... mas, de certa forma, isso não é verdade. Não é que eles sejam mentirosos, acontece apenas que a verdade é instável, e depende do capricho de quem fala. É muito importante que você aprenda japonês o mais depressa possível. Não temos nenhum intérprete, não do nosso povo. Tyrer ficou espantado.
— Nenhum?
Absolutamente nenhum. O padre britânico fala um pouco, mas não podemos usá-lo, porque os japoneses detestam todos os missionários e sacerdotes. Temos três pessoas que falam holandês na colônia, um holandês, um suíço, que serve como nosso intérprete, e um mercador da colônia do Cabo. Nenhum deles é cidadão britânico. Na colônia, falamos uma espécie de língua franca, conhecida como pidgin, da mesma forma que em Hong Kong e Cingapura, e também em outros portos do Tratado da China.
— Era usada também em Pequim.
Babcott percebeu a irritação na voz, mas ainda mais o perigo iminente. Levantou os olhos, compreendeu no mesmo instante que Tyrer se encontrava à beira de um colapso, prestes a vomitar de novo, a qualquer momento.
— Está fazendo um bom trabalho — disse ele, procurando animar o jovem. Depois, empertigou-se para atenuar a dor nas costas, o suor escorrendo pelo corpo. Tornou a se inclinar. Com todo cuidado, ajeitou o intestino costurado na cavidade, passou a dar pontos em outro corte, de dentro para fora.
— Gostou de Pequim? — indagou ele, sem se importar, mas querendo que Tyrer continuasse a falar. Melhor do que uma explosão, pensou Babcott. Não posso cuidar dele até fechar o ferimento deste pobre coitado. — Nunca estive lá. O que achou da cidade?
— Eu... ahn... gostei muito. — Tyrer tentava manter o controle, em meio a uma dor de cabeça terrível. — Os manchus mostram-se bastante submissos no momento, e por isso podemos ir a qualquer lugar que quisermos, com toda segurança.
Os manchus, uma tribo nômade da Manchúria, haviam conquistado a China em 1644, e agora reinavam como a dinastia Ching.
— Podíamos passear a cavalo sem... sem problemas... os chineses não eram... muito cordiais, mas... — O ar abafado e o cheiro se tornaram excessivos. Um espasmo dominou Tyrer, ele foi vomitar e voltou logo, ainda nauseado. — Desculpe.