— Estava falando sobre os manchus.
Subitamente, Tyrer teve vontade de gritar que não estava interessado nos manchus, em Pequim, ou qualquer outra coisa, que só queria sair correndo do mau cheiro, escapar de sua própria impotência.
— Ora, que se danem...
— Fale comigo! Fale!
— Fomos informados que... que normalmente eles são arrogantes e detestáveis, e é óbvio que os chineses acalentam um ódio mortal aos manchus.
A voz de Tyrer era apática, porém quanto mais ele se concentrava em falar, menor era o ímpeto para fugir, e continuou, embora hesitante:
— Parece que todos estão apavorados com a possibilidade de a rebelião Tai’ping se irradiar de Nanquim e acabar alcançando Pequim, pois seria o fim de...
Ele parou, escutando atentamente. Tinha um gosto horrível na boca, a cabeça latejava cada vez mais.
— O que foi?
— Tive a impressão de ouvir alguém gritar.
Babcott prestou atenção, nada ouviu.
— Continue a falar sobre os manchus.
— Ahn... há um medo muito grande da rebelião Tai’ping. Os rumores são de que mais de dez milhões de camponeses foram mortos ou morreram de fome nos últimos dez anos. Mas a situação é tranqüila em Pequim... claro que a ação das forças britânicas e francesas, Saquêando e incendiando o Palácio de Verão, há dois anos, por ordem de Lorde Elgin, como represália, também ensinou uma lição que os manchus não vão esquecer tão depressa. Nunca mais vão assassinar cidadãos britânicos levianamente. Não é o que Sir William vai ordenar aqui? Uma represália?
— Se soubéssemos contra quem desfechar a represália, já teríamos começado. Mas contra quem? Não se pode bombardear Iedo porque uns poucos assassinos desconhecidos...
Vozes iradas interromperam-no, do sargento inglês e o som gutural de japoneses. Aporta foi aberta abruptamente por um samurai. Por trás dele, dois outros ameaçavam o sargento, suas espadas meio fora das bainhas, enquanto dois granadeiros lhes apontavam seus rifles de carregar pela culatra. O quarto samurai, um homem mais velho, entrou na sala. Tyrer recuou para a parede, apavorado, recordando a morte de Canterbury.
— Kinjiru! — berrou Babcott.
Todos ficaram imóveis. Por um momento, parecia que o homem mais velho, furioso agora, ia desembainhar sua espada e atacar. Mas Babcott virou-se e confrontou-os, um bisturi no punho enorme, sangue nas mãos e no avental, gigantesco e diabólico.
— Kinjiru! — ordenou ele outra vez, apontando com o bisturi. — Saiam! Dete. Dete... dozo.
Babcott lançou um olhar irado para todos, depois virou-lhes as costas, e continuou a costurar e limpar o ferimento.
— Sargento, leve-os para a sala de recepção... polidamente.
— Sim, senhor.
Através de sinais, o sargento chamou os samurais, que conversaram entre si, visivelmente zangados.
— Dozo — murmurou o sargento, várias vezes. — Venham comigo, seus desgraçados nojentos!
Ele tornou a fazer sinais. O samurai mais velho acenou para os outros, autoritário, e saiu da sala. No mesmo instante, os outros três fizeram uma reverência e o seguiram.
Contrafeito, Babcott removeu uma gota de suor do queixo com o dorso da mão, e depois prosseguiu em seu trabalho, a cabeça, o pescoço e as costas doendo muito.
— Kinjiru significa é proibido.
Ele fez um esforço para falar com toda calma, embora o coração batesse na maior violência, como sempre acontecia quando havia samurais por perto, dispostos a desembainhar suas espadas, e não tinha uma pistola na mão, engatilhada, Pronta para disparar. Por vezes demais fora chamado para cuidar dos resultados daquelas espadas, contra europeus e contra os próprios japoneses, pois as lutas e rivalidades entre samurais eram constantes em Iocoama, Kanagawa e nas aldeias ao redor.
— Dozo significa por favor e dete é saia. Com os japoneses, é muito importante usar por favor e obrigado. Domo é obrigado. Não deixe de usar essas palavras, mesmo gritando. — O médico olhou para Tyrer, que tornara a se encostar na parede, tremendo. — Há uísque no armário.
— Eu... estou bem...
— Não, não está. Continua em choque. Tome uma boa dose de uísque. Em goles pequenos. Assim que acabar aqui, eu lhe darei uma coisa para o enjôo. Não deve se preocupar. Entendido?
Tyrer acenou com a cabeça. As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto, não conseguia contê-las, e descobriu que tinha dificuldade para andar.
— O que... o que há comigo? — balbuciou ele.
— Apenas o choque, não se preocupe. Já vai passar. É normal na guerra, e estamos em guerra aqui. Acabarei num instante, e depois daremos um jeito naqueles miseráveis.
— Como, como fará isso?
— Não sei. — Havia um tom de nervosismo na voz do médico, enquanto tornava a limpar o ferimento com outro chumaço, de uma pilha minguante... e ainda havia muito para costurar. — Do jeito de sempre, eu acho, sacudindo as mãos, dizendo que nosso ministro vai fazer o diabo com eles, e tentando descobrir quem atacou vocês. Claro que eles negarão qualquer conhecimento do incidente, o que provavelmente é certo... parecem nunca saber nada sobre qualquer coisa. São diferentes de todos os outros povos que já conheci. Não sei se são apenas estúpidos ou inteligentes e furtivos ao nível do gênio. Parece que não podemos nos infiltrar em sua sociedade... e os nossos chineses também não conseguem... e não temos aliados entre eles, parece impossível subornar qualquer um para nos ajudar, não podemos sequer lhes falar diretamente. Estamos completamente desamparados. Sente-se melhor agora?
Tyrer tomara um pouco de uísque. Antes disso, enxugara as lágrimas, dominado pela vergonha, lavara a boca, derramara água na cabeça.
— Não muito... mas obrigado. Estou bem. E qual é o estado de Struan?
Depois de uma breve pausa, Babcott respondeu:
— Não sei. Nunca se pode saber com certeza.
Seu coração acelerou ao som de mais passos. Tyrer empalideceu. Uma batida na porta, que foi aberta no instante seguinte.
— Santo Deus! — balbuciou Jamie McFay, toda a sua atenção na mesa ensangüentada e no enorme talho no flanco de Struan. — Ele vai ficar bom?
— Olá, Jamie — disse Babcott. — Já soube...
— Já, sim. Viemos da Tokaidô, procurando o Sr. Struan. Dmitri está lá fora. Está bem, Sr. Tyrer? Os miseráveis esquartejaram o pobre Sr. Canterbury em uma dúzia de pedaços, e deixaram para os corvos...