— Não é, não — declarara Ori. — Não esqueça o que o sensei nos disse. Durante uma das sessões secretas com seu grupo especial de acólitos, Katsumata dissera:
— A receita de Satsuma equivale a setecentos e cinqüenta mil koku, e cabe ao nosso senhor, o daimio, distribuí-la como achar mais apropriado. Isso é outro costume que a nova administração vai modificar. Quando a grande mudança ocorrer, a receita de um feudo será dividida por um Conselho de Estado, formado por homens sábios, vindos de qualquer categoria de samurais, altos ou baixos, de qualquer idade, desde que o homem possua a sabedoria necessária e tenha demonstrado que é um homem honrado. A mesma coisa acontecerá em todos os feudos, e o país será dirigido por um Supremo Conselho de Estado, sediado em Iedo ou Quioto, também formado por samurais de honra... sob a orientação do filho do céu.
— Sensei, disse qualquer um? — indagara Ori. — Posso perguntar se isso inclui também os Toranagas?
— Não haverá exceções, se for um homem de valor.
— Sensei, por favor, sobre os Toranagas. Alguém sabe qual é a verdadeira riqueza deles, as terras que controlam?
— Depois de Sekigahara, Toranaga se apossou das terras dos inimigos mortos, que valem anualmente cinco milhões de koku, cerca de um terço da riqueza de Nipão, para si mesmo e sua família. Em caráter perpétuo.
No silêncio atordoado que se seguira, Ori comentara, por todos os outros:
— Com essa riqueza, poderíamos ter a maior marinha do mundo, com todos os vasos de guerra, canhões e armas de fogo de que necessitamos, poderíamos ter as melhores legiões, com as melhores armas, e conseguiríamos expulsar os gai-jin.
— Poderíamos levar a guerra até eles e ampliar nossas praias — acrescentara Katsumata, suavemente. — Repararíamos nossa vergonha anterior.
Todos compreenderam que ele se referia ao tairo, o general Nakamura, antecessor imediato e suserano de Toranaga, o grande general-camponês que dominava os portões e a quem o imperador concedera, em gratidão, o título mais elevado a que um homem de origens humildes podia aspirar, o de tairo, significando ditador — não o de xógum, a que ele aspirara até a obsessão, mas nunca poderia ter.
Depois de subjugar todo o país, acima de tudo ao persuadir seu principal inimigo, Toranaga, a jurar fidelidade a ele e seu herdeiro para sempre, Nakamura organizara uma imensa armada e desfechara uma campanha contra Chosen ou Coréia, como o lugar era às vezes chamado, a fim de conquistar esse país e usá-lo como um trampolim para dominar o trono do dragão da China. Mas seus exércitos fracassaram, e logo bateram em retirada na maior ignomínia — da mesma forma que, em épocas anteriores, séculos antes, duas outras tentativas japonesas também haviam sido frustradas, terminando em desastre, o trono da China continuando a ser uma permanente atração.
— Tamanha vergonha precisa ser erradicada... como a vergonha de os filhos do céu sofrerem por causa dos Toranagas, que usurparam o poder de Nakamura Por ocasião de sua morte, destruíram sua esposa e filho, arrasaram seu castelo em Osaka e Saquêaram a herança do filho do céu por tempo demais! Sonno-joi!
— Sonno-joi! — repetiram todos. Com o maior fervor.
Ao crepúsculo, os jovens estavam se cansando, esgotados pela fuga precipitada. Mas nenhum dos dois queria ser o primeiro a admiti-lo, e por isso continuaram até alcançarem o limiar do bosque. Agora, à frente, havia arrozais nos lados da Tokaidô, que levava a Kanagawa, um pouco adiante, e à barreira na estrada. A praia ficava para a direita.
— Vamos... vamos parar um pouco — sugeriu Ori, o braço ferido latejando a cabeça doída, o peito dolorido, mas sem deixar transparecer.
— Está certo. — Shorin também ofegava, também sentia o corpo todo dolorido, mas soltou uma risada — Você é fraco, como uma velha.
Ele procurou um pedaço de solo seco e sentou, agradecido. Passou a olhar ao redor, de uma forma meticulosa, enquanto tentava recuperar o fôlego.
A Tokaidô estava quase vazia, pois as viagens noturnas, em geral, eram proibidas pelo Bakufu, e sujeitas a interrogatórios e severas punições, se não fossem justificadas. Vários carregadores e os últimos viajantes seguiam apressados para a barreira de Kanagawa, todos os outros já tomando banho ou bebendo nas estalagens de sua escolha... e sempre havia muitas em todas as estações de posta. Por todo o país, as barreiras nas estradas principais fechavam ao cair da noite, e só eram reabertas ao amanhecer, sempre vigiadas por samurais locais.
No outro lado da baía, Shorin podia avistar os lampiões a óleo na rua e em algumas casas da colônia, assim como nos navios ancorados. Uma lua clara, meio cheia, subia do horizonte.
— Como está seu braço, Ori?
— Muito bem, Shorin. Já estamos a mais de uma ri de Hodogaya.
— É verdade, mas não me sentirei seguro enquanto não chegarmos à estalagem. — Shorin começou a massagear o pescoço, tentando aliviar a dor ali e na cabeça. O golpe de Katsumata o deixara atordoado. — Quando nos apresentamos ao senhor Sanjiro, pensei que estávamos perdidos. Achei que ele ia nos condenar.
— Eu também. — Enquanto falava, Ori sentiu-se mal, o braço latejando, o peito arfando, o rosto ardendo. Com a mão boa, afugentou um enxame de insetos noturnos. — Se ele... Eu estava disposto a pegar minha espada e despachá-lo na nossa frente.
— Eu também, mas o sensei nos vigiava com toda atenção, e teria nos matado antes que fizéssemos qualquer movimento.
— Tem razão mais uma vez. — O homem mais moço estremeceu. — O golpe dele quase me arrancou a cabeça. É incrível que tenha tanta força. Fico contente que esteja do nosso lado, e não contra nós. Foi ele quem nos salvou, só ele, submetendo o senhor Sanjiro à sua vontade.
Ori fez uma pausa, subitamente sombrio, e depois acrescentou:
— Shorin, enquanto esperava, eu... para me manter forte, compus meu poema da morte.
Shorin também se tornou solene.
— Posso ouvi-lo?
— Pode.
Sonno-joi ao pôr-do-sol,
Nada desperdiçado.
Para o nada
Eu salto.
Shorin pensou no poema, saboreando-o, o equilíbrio das palavras, o terceiro nível de significado, antes de dizer, ainda solene:
— É sábio para um samurai ter composto um poema da morte. Ainda não consegui isso, embora devesse, e depois todo o resto da vida é extra.