— Que maneiras lamentáveis! Mas o que ele podia fazer, contra armas?
— Deveria ter atacado e matado a todos, antes de morrer — respondeu Shorin, os joelhos tremendo de raiva. — Eu não agiria como aquele covarde... teria atacado e morrido.
— Tem razão. Eu acho que... — Ori parou de falar abruptamente, a ira se dissipando a uma idéia repentina. — Vamos embora. Descobriremos para onde eles vão... talvez possamos roubar algumas daquelas armas.
4
Um escaler da marinha real saiu do crepúsculo, avançando depressa para o cais de Kanagawa. Era um atracadouro de sólida construção, em madeira e pedra, ao contrário dos outros espalhados pela costa, e tinha uma placa com dizeres em inglês e japonês: Propriedade da legação de sua majestade britânica, Kanagawa — os invasores serão processados. Marujos acionavam os remos do escaler, que levava um numeroso grupo de fuzileiros armados. O mar estava encapelado, a lua subia pelo céu, um vento firme dissipava as nuvens.
Um dos granadeiros da legação esperava na extremidade do cais. Ao seu lado havia um chinês de cara redonda, usando uma túnica comprida, de gola alta, e carregando um lampião a óleo na ponta de uma vara.
— Remos alto! — ordenou o contramestre.
No mesmo instante os remos foram recolhidos, o remador de proa pulou para o cais, foi prender o cabo num poste de amarração. Os fuzileiros desembarcaram, apressados, numa ordem disciplinada, formaram uma linha defensiva, as armas de prontidão, enquanto o sargento no comando inspecionava a área ao redor. Havia um oficial naval na popa. E Angelique Richaud. Ele ajudou-a a desembarcar.
— Boa noite, senhor, madame — disse o granadeiro, batendo continência para o oficial. — Este é Lun, um assistente na legação.
Lun olhou aturdido para a moça.
— Boa noite, senhor. Chegou aqui bem depressa. E trouxe a moça. Angelique sentia-se bastante nervosa e ansiosa. Usava uma touca e um vestido de seda azul, com um xale combinando, o que ressaltava sua palidez e os cabelos louros com perfeição.
— Como está o Sr. Struan?
O soldado respondeu com toda gentileza:
— Não sei, madame. O Dr. Babcott é o melhor por estas águas, e assim o pobre coitado vai ficar bom, se for a vontade de Deus. Ele ficará bastante contente em vê-la... esteve perguntando pela senhorita. Não a esperávamos antes de amanhã.
— E o Sr. Tyrer?
— Está bem. Sofreu apenas um ferimento superficial. É melhor partirmos logo.
— Fica muito longe?
Lun interveio, irritado:
— Não, não fica muito longe, e isso não importa.
Ele levantou o lampião e partiu pela noite, falando depressa, em cantonês.
Mas que insolente!, pensou o oficial. Ele era alto, comandante da marinha real, e se chamava John Marlowe. Puseram-se a seguir o chinês, os fuzileiros formando um círculo protetor, com os batedores na frente.
— Está bem, Srta. Angelique? — perguntou o oficial.
— Estou, sim, obrigada. — Ela ajeitou o xale nos ombros, andando com extremo cuidado. — Que cheiro horrível!
— É do esterco que eles usam como fertilizante, e mais a maré baixa. — Marlowe tinha vinte e oito anos, ruivo, olhos azul-acinzentados, normalmente comandava a H.M.S. Pearl, uma fragata a vapor com vinte e um canhões, mas, agora, servia como ajudante-de-ordens do oficial de maior patente na esquadra, o almirante Ketterer. — Gostaria de uma liteira?
— Obrigada, mas não há necessidade.
Lun seguia um pouco à frente, iluminando o caminho pelas ruas estreitas e vazias da aldeia. A maior parte de Kanagawa se mantinha em silêncio, mas de vez em quando podiam ouvir os risos efusivos e bêbados de homens e mulheres, por trás dos muros altos, interrompidos a intervalos por pequenos portais gradeados. Havia diversas placas ornamentais japonesas.
— Esses lugares são estalagens, hotéis? — indagou Angelique.
— Acho que sim — respondeu Marlowe.
Lun riu baixinho ao ouvir essa conversa. Seu inglês era fluente — aprendido numa escola missionária em Hong Kong. Por instruções expressas, ocultava esse fato com o maior cuidado, sempre falava pidgin, e fingia ser estúpido. Assim, tomava conhecimento de muitos segredos, de grande valor para ele, para seus superiores tongs e para seu líder, o Ilustre Chen, Gordon Chen, compradore da companhia de Struan. Um compradore, em geral um eurasiano bem-nascido, era o intermediário indispensável entre os mercadores europeus e chineses, sabendo falar inglês fluente e conhecendo os dialetos chineses, ganhando pelo menos dez por cento de todas as transações.
Ah, a moça altiva, que desperta desejos não correspondidos, pensou Lun, divertido, sabendo muita coisa a respeito de Angelique. Qual desses fedorentos olhos redondos será o primeiro a abrir suas pernas e penetrar em seu portão de jade, igualmente fétido? É tão intocada quanto assume, ou será que o neto do demônio Struan de olhos verdes já desfrutou as nuvens e a chuva? Por todos os deuses, grandes e pequenos, saberei em breve, porque sua criada é filha da prima em terceiro grau de minha irmã. Já sei que seus cabelos curtos precisam ser trançados, são tão louros quanto os cabelos compridos, e abundantes demais para agradarem a um homem civilizado, mas imagino que é atraente para um bárbaro. Uma coisa horrível!
A vida é mesmo muito interessante. Sou capaz de apostar que esse ataque assassino vai causar muitos problemas tanto aos demônios estrangeiros quanto aos comedores de imundície destas ilhas. Maravilhoso! E que todos se afoguem em suas próprias fezes!
Interessante que o neto do demônio de olhos verdes estivesse gravemente ferido, o que continua o fado ruim de todos os homens de sua linhagem, e interessante que a notícia já tenha sido enviada secretamente para Hong Kong, pelo mais veloz dos nossos mensageiros. Como sou esperto! Mas, afinal, nasci no Império do Meio, o que me torna uma pessoa superior.
Mas um vento ruim para um é bom para outro. Essa notícia, com toda certeza, vai provocar uma queda considerável no preço das cotas da Casa Nobre. Com informações antecipadas, eu e meus amigos obteremos um lucro enorme. Por todos os deuses, apostarei dez por cento de minha parte no lucro no próximo cavalo nas corridas no Happy Valley que tiver o número quatorze, a data de hoje, pela contagem dos bárbaros.
— Oi! — gritou ele, apontando.
Os torreões centrais do templo assomavam sobre as vielas e passagens estreitas entre as casas, pequenas, com um só andar, todas separadas, embora agrupadas como uma colméia.
Dois granadeiros e seu sargento montavam guarda nos portões do templo, bem iluminados por lampiões a óleo. Babcott também se encontrava ali e disse, sorrindo:
— Olá, Marlowe. É um prazer inesperado. Boa noite, mademoiselle. O que...
— Desculpe, doutor — interrompeu-o Angelique, espantada com o tamanho do médico —, mas soubemos que Malcolm... o Sr.Struan... foi gravemente ferido...