— Ele recebeu um golpe profundo de espada, mas já foi costurado e agora dorme — respondeu Babcott, calmamente. — Dei-lhe um sedativo. Vou levá-la até ele num instante. O que está acontecendo, Marlowe? Por que...
— E Philip Tyrer? — interrompeu Angelique de novo. — Ele também foi gravemente ferido?
— Apenas um ferimento superficial, mademoiselle. Não há nada que possa fazer no momento, pois ambos se encontram sob o efeito de sedativos. Por que os fuzileiros, Marlowe?
— O almirante achou que seria melhor ter uma proteção extra... para o caso de haver necessidade de uma evacuação.
Babcott assobiou.
— É tão sério assim?
— Está ocorrendo uma reunião neste momento. O almirante, o general, Sir William, juntamente com os representantes francês, alemão, russo e americano, com... hum... a fraternidade comercial. — Uma pausa, e Marlowe acrescentou, secamente: — Aposto que é uma reunião um tanto acalorada.
Ele virou-se para o sargento dos fuzileiros reais.
— Providencie a segurança da legação, sargento Crimp. Inspecionarei os postos mais tarde. — Para o sargento dos granadeiros, ele disse: — Por favor, preste ao sargento Crimp toda a ajuda que ele precisar, onde alojar seus homens, e assim por diante. Seu nome, por favor?
— Towery, senhor.
— Obrigado, sargento Towery. Babcott interveio:
— Vocês dois não gostariam de vir comigo para tomar um chá?
— Não, obrigada — respondeu Angelique, tentando ser polida, mas na maior impaciência, detestando a maneira como os ingleses preparavam o chá e o ofereciam sob qualquer pretexto. — Mas gostaria de ver o Sr. Struan e o Sr. Tyrer.
— Claro. Imediatamente.
O médico já percebera que ela se encontrava à beira das lágrimas, concluíra que precisava mesmo de uma xícara de chá, talvez temperado com um pouco de conhaque, um sedativo e cama.
— O jovem Phillip sofreu um choque e tanto... e deve ter sido terrível para você também.
— Ele está bem?
— Está, sim — repetiu Babcott, paciente. — Venha verificar pessoalmente. Ele seguiu na frente, através do pátio. Pararam ao ouvir o barulho de cascos de cavalos e arreios. Surpresos, viram uma patrulha de dragões chegar.
— Santo Deus, é Pallidar! — exclamou Marlowe. — O que ele está fazendo aqui?
Observaram o oficial dos dragões responder às continências dos fuzileiros e granadeiros e depois desmontar.
— Uma coisa incrível! — disse Pallidar, sem notar a presença de Marlowe, Babcott e Angelique. — Aqueles malditos japoneses tentaram bloquear a droga da estrada para nós! Infelizmente, os filhos da puta mudaram de idéia, ou estariam agora cheios de flores de sangue e...
Só nesse instante é que ele viu Angelique e parou de falar, consternado.
— Santo Deus! Eu... ahn... lamento profundamente, mademoiselle... não sabia que havia damas aqui... Olá, John, doutor.
Marlowe disse:
— Olá, Settry. Mademoiselle Angelique, quero lhe apresentar o capitão Settry Pallidar, do oitavo regimento de dragões de sua majestade, um homem de fala rude. Mademoiselle Angelique Richaud.
Ela acenou com a cabeça, friamente, e Pallidar fez uma mesura rígida.
Eu... ahn... lamento muito, mademoiselle. Doutor, fui enviado para dar proteção à legação, caso haja necessidade de uma evacuação.
O almirante já havia nos enviado com essa missão — informou Marlowe, em tom incisivo. — Com fuzileiros.
Pode dispensá-los, pois agora estamos aqui.
— Ora, vá... Sugiro que peça novas ordens. Amanhã. Enquanto isso, sou o oficial superior e assumo o comando. Doutor, talvez seja melhor leva a dama para ver o Sr. Struan.
Babcott observara a confrontação dos dois jovens com bastante preocupação já que gostava de ambos. Cordiais na superfície, eram implacáveis por baixo. Esses dois jovens touros ainda vão se engalfinhar um dia... e que Deus os ajude se for por causa de uma mulher.
— Até mais tarde.
Pegando o braço de Angelique, ele se afastou. Os dois homens esperaram que eles se afastassem, e depois Pallidar empinou o queixo, beligerante.
— Não estamos no convés de um navio. Isto é um trabalho para o exército.
— Chega de besteira.
— Perdeu o cérebro junto com as boas maneiras? Por que trazer uma mulher para cá, quando só Deus sabe o que pode acontecer?
— Porque o importante Sr. Struan pediu para vê-la, e se trata de uma boa idéia, em termos médicos, ela persuadiu o almirante a permitir-lhe que viesse esta noite, contra a minha opinião. Ele me ordenou que a escoltasse até aqui e a levasse de volta, sã e salva. Sargento Towery!
— Pois não, senhor.
— Estou no comando geral, até novas ordens. Leve os dragões aos alojamentos e providencie para que tenham tudo o que for necessário. Pode guardar seus cavalos? Tem rações em quantidade suficiente?
— Há bastante espaço disponível, senhor. A comida não é muita.
— Alguma vez já houve comida em abundância neste lugar esquecido por Deus? — Marlowe acenou para que o sargento se aproximasse, e acrescentou, em tom ameaçador: — Espalhe o aviso. Nada de brigas, e se houver alguma, o desgraçado envolvido será punido com cem chibatadas... quem quer que seja!
O bar do Iocoama Club, a maior sala na colônia, e por isso o local de encontro, era um tumulto só, lotado com quase toda a população aceitável da colônia — só faltavam os que estavam bêbados demais para ficarem de pé e os muito doentes — todos gritando em várias línguas, muitos armados, muitos brandindo o punho e lançando imprecações contra o pequeno grupo de homens bem vestidos, sentados a uma mesa nos fundos, a maioria gritando em resposta, o almirante e o general quase apoplécticos.
— Diga isso de novo, por Deus, e vou levá-la para fora...
— Vá para o inferno, seu miserável...
— É a guerra, e Wullem tem...
— Vamos acionar a droga do exército e da marinha para bombardear Iedo.
— Vamos arrasar a porra da capital...
— Canterbury tem de ser vingado, e Wullum deve...
— É isso mesmo, Willum é o responsável...
— Escutem, todos vocês!
Um dos homens sentados começou a bater com um martelo na mesa, para pedir silencio. Só serviu para enfurecer ainda mais a multidão... mercadores, pequenos comerciantes, estalajadeiros, jogadores, cavalariços, carniceiros, jóqueis, marujos, os emigrantes que viviam do dinheiro recebido de casa, fabricantes de velas, a ralé do porto. Cartolas, coletes multicoloridos, roupas de lã, botas de ouro, de ricos a pobres, o ar quente, abafado, enfumaçado, impregnado do odor de corpos imundos, cerveja quente, uísque, gim, rum e vinho derramados.