— É o destino. Já... já é o dia seguinte, não é mesmo?
— É, sim. O ataque foi ontem à tarde.
Parecia difícil ao cérebro de Struan traduzir as palavras da moça de uma forma compreensível, e igualmente difícil compor palavras e pronunciá-las, da mesma forma que Angelique sentia dificuldade em permanecer ali.
— Ontem? Parece que toda uma vida passou. Viu Phillip?
— Eu o vi antes, mas ele dormia. Irei vê-lo de novo assim que sair daqui, chéri, Na verdade, é melhor eu ir agora, pois o médico disse que não devia cansá-lo.
— Não vá ainda, por favor. Escute, Angelique, não sei quando... quando terei condições de viajar...— Ele fechou os olhos por um momento, contra uma pontada de dor, que logo cessou. Ao focalizá-la de novo, percebeu seu medo, e interpretou-o de maneira errada. — Não se preocupe. McFay providenciará para que você seja es... escoltada de volta a Hong Kong, sã e salva. Por favor, não se preocupe.
— Obrigada, Malcolm. Acho mesmo que devo voltar, amanhã ou depois. — Angelique percebeu o súbito desapontamento, e se apressou em acrescentar: — Claro que você já estará melhor até lá, e poderemos partir juntos... Ah, já ia me esquecendo, Henri Seratard enviou suas condolências...
Ela parou de falar, consternada, enquanto uma dor intensa dominava Struan. Seu rosto se contorceu, ele tentou se dobrar, não conseguiu, as entranhas querendo expelir o veneno terrível do éter, que parecia impregnar cada poro e célula do cérebro. Só que não podia, pois o estômago e intestinos já haviam se esvaziado de tudo o que era possível. Cada espasmo parecia dilacerar os ferimentos, cada acesso de tosse era mais angustiante do que o anterior, saindo apenas um pouco de líquido pútrido por todo o tormento.
Em pânico, Angelique virou-se para chamar o médico, tateando à procura da maçaneta da porta.
— Está tudo bem, Ange... Angelique — balbuciou a voz que ela mal reconhecia agora. — Fique... mais um pouco.
Struan viu o horror no rosto da moça e tornou a interpretar errado, entendendo-o como ansiedade, profunda compaixão e amor. O medo deixou-o e tratou de se recostar, para reunir alguma força.
— Minha querida, eu esperava... esperava tanto... claro que sabe que a amei desde o primeiro momento.
O espasmo minara suas forças, mas a convicção absoluta de que vira em Angelique aquilo pelo que rezava lhe proporcionou enorme paz.
— Não consigo pensar direito, mas queria... vê-la para dizer... por Deus, Angelique, fiquei apavorado com a operação, apavorado com as drogas, apavorado com a possibilidade de morrer e não despertar antes de vê-la de novo... nunca me senti tão apavorado!
— Eu também ficaria apavorada... oh, Malcolm, tudo isso é tão horrível! — Angelique sentia a pele pegajosa, a cabeça doía cada vez mais, tinha medo de vomitar a qualquer momento. — O médico me garantiu, e a todo mundo, que você logo ficará bom.
— Não me importo, agora que sei que você me ama. Se eu morrer, é o destino, e na minha família sabemos que não podemos escapar ao destino. Você é minha estrela da sorte, meu imã... compreendi desde o primeiro instante. Vamos casar...
As palavras definharam. Struan sentia um zumbido nos ouvidos, tinha os olhos turvos, as pálpebras adejaram, à medida que o opiato fazia efeito, levando-o para o mundo da escuridão, em que a dor ainda existia, mas era transformada em ausência de dor.
— ...casar na primavera...
— Malcolm, escute, você não vai morrer, e eu... alors, devo ser franca...— Uma pausa, e as palavras se despejaram. — Não quero casar ainda, não tenho certeza se o amo, simplesmente não tenho certeza, você terá de ser paciente, e se eu o amar ou não, acho que nunca poderia viver neste lugar horrível, nem em Hong Kong, na verdade, sei que não posso, não vou viver lá, não posso, sei que morreria, a idéia de viver na Ásia me horroriza, com todo esse mau cheiro, essas pessoas repulsivas. Voltarei a Paris, que é o lugar a que pertenço, assim que puder, e nunca mais visitarei a Ásia, nunca, nunca, nunca!
Mas Struan não ouvira nada disso. Sonhava agora, sem vê-la, e murmurou:
— ...muitos filhos, você e eu... tão feliz por você me amar... rezei por isso... e agora... viveremos para sempre na Casa Grande no Pico. Seu amor expulsou o medo, o medo da morte, sempre o medo da morte, sempre tão próxima, os gêmeos, a irmãzinha Mary morreram tão cedo, meu irmão, o pai quase morto... o avô, outra morte violenta, mas agora... agora... tudo mudou... casaremos na primavera, está bem?
Ele abriu os olhos. Por um instante, viu-a com nitidez, o rosto contraído, as mãos se retorcendo, a repulsa, e sentiu vontade de gritar. Qual é o problema, pelo amor de Deus? Isto é apenas uma enfermaria, sei que o cobertor ficou encharcado de suor, que estou deitado num pouco de urina e fezes, que tudo fede, mas isso acontece porque fui ferido, pelo amor de Deus, apenas me cortaram, mas agora já fui costurado, estou bem de novo, bem de novo, bem de novo...
Mas nenhuma das palavras saiu, e ele viu-a dizer alguma coisa, abrir a porta abruptamente e sair correndo, mas isso era apenas um pesadelo, os sonhos bons o chamavam de volta. Aporta bateu, e o barulho ressoou e ressoou... bem de novo, bem de novo, bem de novo...
Angelique se encostava na porta para o jardim, sorvendo o ar noturno, tentando recuperar o controle. Santa mãe de Deus, dê-me forças, dê àquele homem um pouco de paz, e me ajude a sair deste lugar o mais depressa possível. Foi nesse momento que Babcott se aproximou por trás.
— Ele está bem, não se preocupe. Tome, beba isto — murmurou ele, compadecido, entregando um opiato. — Vai ajudá-la a dormir.
Angelique obedeceu. O líquido não tinha um gosto bom nem ruim.
— Ele dorme sereno agora. Vamos, você também precisa descansar. Babcott ajudou-a a subir, levou-a para seu quarto. Na porta, ele hesitou.
— Duma bem... tenho certeza de que vai dormir bem.
— Tenho medo por ele, muito medo.
— Não precisa ter. Vai ver só como ele já estará melhor pela manhã.
— Obrigada, já me sinto bem agora... Ele... acho que Malcolm pensa que vai morrer... vai?
— Claro que não. É um jovem forte e vai se recuperar num instante, ficará tão bom quanto novo.
Babcott repetia o mesmo chavão que já usara mil vezes, e não dizia a verdade: Não sei, nunca se sabe, agora depende de Deus.
E, no entanto, ele sabia que na maioria das vezes era correto oferecer à pessoa amada alguma esperança, reduzir o fardo da preocupação crescente, embora não fosse correto nem justo tornar Deus o responsável pelo paciente viver ou morrer. Mesmo assim, se você se encontra impotente, se fez o seu melhor, mas sabe que o seu melhore todo o conhecimento existente não são suficientes, o que mais pode fazer, e permanecer são? Quantos jovens você já viu como este, e mortos pela manhã, ou no dia seguinte... ou recuperados, se é essa a vontade de Deus. Seria mesmo? Acho que a falta de conhecimento. E depois a vontade de Deus. Se é que existe um Deus.