— Estou seguindo para a cidade dos bêbados e a aldeia — anunciou o general, esbaforido. — Planejo explodir algumas casas para abrir um aceiro que impeça a passagem do fogo... com a sua permissão. Concorda?
— Claro. Faça o que for necessário. Pode dar certo. Se o vento não diminuir, estaremos liquidados de qualquer maneira. Vá depressa!
— Por acaso eu observava do penhasco e tive a impressão de que três ou quatro incêndios começaram ao mesmo tempo na Yoshiwara, em pontos diferentes.
— Por Deus! Está querendo dizer que foi um incêndio criminoso?
— Não sei, mas quer tenha sido um ato de Deus ou do demônio, ou de um maldito incendiário, isto vai nos destruir!
Acompanhado por seus homens, o general se afastou pela escuridão. Sir William viu o almirante subir pela praia, do cais da legação, onde mais marujos e fuzileiros desembarcavam.
— Os barcos já estão prontos para a evacuação — avisou Ketterer. — Temos suprimentos em quantidade suficiente para toda a população. Podemos reunir o pessoal ao longo da praia, onde haverá segurança.
— Ótimo. A situação pode se tornar perigosa.
— Tem isso. Isso muda completamente os nossos planos, não é?
— Receio que sim. O incêndio não poderia ter ocorrido numa ocasião pior. Maldito fogo, pensou Sir William, furioso. Complica tudo — a reunião com Yoshi amanhã, o bombardeio de Kagoshima, logo no momento em que Ketterer finalmente concordava em obedecer às minhas instruções. O que faremos agora? Vamos evacuar Iocoama? Embarcar todo mundo na esquadra e voltar a Hong Kong, com o rabo entre as pernas? Ou transferir todo mundo para Kanagawa e que se dane o que os japoneses podem fazer? Não, não é possível. Kanagawa é uma armadilha pior, pois a baía ali é muito rasa para a esquadra nos ajudar. Ele olhou para Ketterer. O rosto do almirante era duro e curtido, os olhos pequenos fixados na distância. Ele vai optar pelo retorno a Hong Kong, pensou Sir William, consternado. Droga de vento!
Num ponto mais abaixo da rua, MacStruan tinha escadas encostadas na lateral de seu prédio. Vários homens suspendiam baldes com água pela escada, os que estavam no topo molhavam o telhado. No prédio da Brock, ao lado, Gornt e outros faziam a mesma coisa.
— Por Deus, olhem só! — gritou alguém.
As chamas se estendiam agora por toda a linha do horizonte da cidade dos bêbados e da aldeia. O vento era escaldante e forte, soprando contra seus rostos furioso, provocando-os, desafiando-os.
— Mon Dieu! — murmurou Angelique.
Ela usava um casaco por cima da camisola, lenço na camisa. Vestira-se apressada, ao primeiro alarme, e saíra correndo para a rua. Era evidente que o fogo os alcançaria em breve, por isso ela tornou a entrar, subiu apressada para o seu quarto. Rapidamente, meteu suas escovas, pentes, pomadas, cremes e ruges numa bolsa, a melhor lingerie em outra. Um momento de pensamento e depois, não mais assustada, ela abriu a janela, gritou para que Ah Soh permanecesse lá embaixo e pôs-se a lhe jogar seus vestidos e casacos.
Ah Soh fungou, desdenhosa, e não se mexeu. MacStruan, ali perto, ordenou que ela começasse a trabalhar e apontou para o cais da companhia, no outro lado do passeio, onde empregados já guardavam caixas com documentos, fuzis e mercadorias diversas, enquanto Vargas e outros suavam para levar mais pacotes até lá. MacStruan decidira correr o risco de deixar dinheiro, lingotes e alguns documentos no cofre de ferro.
— Ah Soh, sua rameira sem mãe! — gritou ele, num cantonês perfeito. — Leve as coisas da tai-tai para lá, vigie tudo e não saia do lugar mesmo que o fogo do inferno caia em cima de você ou vou bater nas solas de seus pés até virarem uma polpa sangrenta!
Ela obedeceu no mesmo instante e MacStruan acrescentou, rindo:
— Angelique, teremos um aviso com bastante antecedência. Pode ficar aí até eu chamá-la.
— Obrigada, Albert.
Ela viu Gornt levantar os olhos, do prédio ao lado. Ele acenou. Angelique respondeu ao aceno. Não sentia mais medo agora. Albert a avisaria a tempo, a segurança a aguardava no outro lado da rua ou nos barcos que começavam a se concentrar perto da praia. Não havia mais qualquer preocupação em sua mente. Já decidira como cuidar de André, Skye e a mulher de Hong Kong. E de Gornt amanhã. Sabia o que fazer. Cantarolando Mozart, ela pegou uma escova, sentou-se diante do espelho, a fim de se fazer mais apresentável para todos. Era como nos velhos tempos. Agora, o que vou vestir? O que seria melhor?
Raiko seguiu o corpulento servo pelas ruínas de sua estalagem. Ele segurava um lampião a óleo e avançava com extremo cuidado, contornando as brasas que ainda luziam intensamente, uma advertência na escuridão, atiçadas pelo ar quente e acre. Ela tinha o rosto enegrecido, os cabelos impregnados de cinza e poeira, o quimono chamuscado, todo rasgado. Ambos usavam máscaras contra a fumaça, mas mesmo assim tossiam e espirravam de vez em quando.
— Vá mais para a esquerda — balbuciou Raiko, a garganta ressequida, continuando a inspeção.
Podiam ver apenas os suportes de pedras, formando quadrados perfeitos, por cima das cinzas, indicando os lugares em que antes havia habitações.
— Pois não, ama.
E eles seguiram em frente.
Acima do barulho do vento, podiam ouvir vagamente outras pessoas chamando, gritos ocasionais de dor e choro, sinos de incêndio distantes, na aldeia e na colônia, que também ardiam. Raiko superara o pânico inicial. Incêndios acontecem. Eram obra dos deuses. Não importa, estou viva. Amanhã descobrirei o que causou o incêndio, se foi mesmo uma explosão, como alguns alegam, embora na confusão este vento terrível possa enganar os ouvidos, e o barulho possa muito bem ter sido causado por um pote de óleo mal colocado caindo num fogo da cozinha e explodindo, assim o incêndio se iniciando. A casa das Três Carpas desapareceu. Assim como todas as outras ou quase todas. Mas não estou arruinada, ainda não.
Algumas cortesãs e criadas, várias chorando, surgiram da noite, umas poucas com queimaduras. Raiko reconheceu as mulheres do Dragão Verde. Não havia nenhuma das suas ali.
— Parem de chorar! — ordenou ela. — Podem ir para a casa das Dezesseis Orquídeas... todas estão se reunindo ali. Não foi muito afetada e há lugar para dormir, comida e bebida para todas. Onde está Chio-san?
Era a mama-san delas.
— Não a vimos — disse uma delas, entre lágrimas. — Eu estava com um cliente. Mal tive tempo de sair correndo com ele e ir para o abrigo subterrâneo.
— Ótimo. E agora tratem de ir. Sigam por este caminho e tomem cuidado. Raiko sentiu-se satisfeita ao recordar que, por ocasião da construção da Yoshiwara, há pouco mais de dois anos, com as mama-sans escolhidas por sua guilda — e contando com a aprovação prévia e dispendiosa do departamento encarregado do Bakufu —, ela sugerira que cada casa de chá tivesse uma adega à prova de fogo, perto da estrutura central, a estrutura de tijolos abaixo da superfície, como segurança adicional. Nem todas as mama-sans haviam aprovado, dizendo que não havia mérito nenhum na despesa extra. Não importa, elas é que saíram perdendo. Vamos ver quantas vão se lamentar e bater no peito amanhã, por não terem seguido o meu exemplo.