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Ela acabara de inspecionar seu abrigo. Os degraus desciam para a porta revestida de ferro. O interior se encontrava impecável. Todos os bens valiosos se encontravam ali, todos os contratos, provas de dívidas, empréstimos feitos à Gyokoyama, declarações bancárias, vales, as melhores roupas de cama e mesa, os melhores quimonos... tanto os seus quanto os de suas damas, tão bons quanto novos. Desde o início, fora sua política que as melhores roupas não deveriam ser usadas à noite, mas guardadas no abrigo, o que quase sempre acarretava resmungos e protestos pelo trabalho extra. Não haverá resmungos esta madrugada, pensou ela.

Para seu imenso alívio, localizara todas as suas damas depois do incêndio, assim como os criados e clientes, à exceção de Fujiko, Hinodeh, Furansu-san e Taira, mais dois servos e duas criadas, que continuavam desaparecidos. Mas isso não a preocupava. Tinha certeza de que todos se encontravam sãos e salvos, em algum lugar. Um servo avistara um gai-jin, talvez dois, correndo na direção do portão.

Namu Amida Butsu, orou ela, que todos estejam em segurança, e me abençoe por minha sabedoria, ao cuidar para que meu pessoal sempre fizesse os exercícios de incêndio.

O horror do incêndio na Yoshiwara de Iedo, doze anos antes, lhe ensinara a lição. O fogo quase a matara e a seu cliente, um rico mercador de arroz da Gyokoyama. Ela o salvara, despertando-o do estupor da embriaguez, quase o arrastando para fora, ao risco da própria vida. Escapando pelos jardins, descobriram-se subitamente cercados pelo fogo, acuados, mas salvaram-se da morte ao cavarem uma vala na terra macia, com a ajuda da adaga que ela sempre levava na obi, deixando as chamas passarem por cima. Mesmo assim, ela sofrera queimaduras graves na parte inferior das costas e nas pernas, o que encerrara sua carreira de cortesã.

Mas o cliente não a esquecera. Ao se recuperar, convencera o pessoal da Gyokoyama a lhe emprestar os recursos para abrir sua própria casa de chá e depois passara a se dedicar a outra dama. O investimento já dera um lucro cinco vezes maior que o seu valor. Naquele incêndio, mais de cem cortesãs, dezesseis mama-sans, incontáveis clientes e criadas haviam perecido. Mais morreram no incêndio da Shimibara, em Quioto. Ao longo dos séculos, centenas em outros incêndios. No grande fogo das mangas pendentes, poucos anos depois de mama-san Gyoko ter construído a primeira Yoshiwara, o fogo fora devastador, custando cem mil vidas a Iedo. Em dois anos, tudo fora reconstruído, prosperava de novo, só para queimar outra vez, ser reconstruído, queimar, num processo interminável. E agora, como antes, jurou Raiko, reconstruiremos a nossa Yoshiwara para ser melhor do que nunca!

— A casa das Dezesseis Orquídeas seria nessa direção, ama, neh?

O servo hesitou, indeciso, entre as nuvens de fumaça. Ao redor, havia apenas brasas e cinzas, uns poucos suportes de pedra patéticos, sem que se pudesse divisar os caminhos sinuosos, sem os marcos de pedra para orientá-los. De repente, uma rajada de vento removeu cinzas para revelar os suportes de um bangalô e um dragão de pedra rachado pelo calor. Raiko reconheceu-o e compreendeu onde se encontravam. O bangalô de Hinodeh.

— Devemos voltar um pouco — disse ela. Foi nesse instante que alguma coisa atraiu sua atenção. Um brilho. — Espere um pouco. O que é aquilo?

— Onde, ama?

Raiko esperou. Outra vez o vento agitou as brasas e outra vez um objeto faiscou, um pouco à frente, à direita.

— Ali!

— Ah, sim.

Com todo cuidado, ele usou um galho enegrecido, sem folhas, para abrir caminho, foi se adiantando, ergueu o lampião para espiar à frente. Outro passo cauteloso, só para recuar apressado, quando uma nova rajada jogou fagulhas em sua direção.

— Vamos voltar. Procuraremos amanhã.

— Um momento, ama.

Estremecendo com o calor, ele usou o galho para remover mais cinzas. E soltou uma exclamação aturdida. Os dois corpos carbonizados estavam estendidos lado a lado, a mão esquerda de um na mão direita de outro. O brilho era de um anel de sinete de ouro, retorcido, parcialmente derretido.

— Ama!

Consternada, como uma estátua, Raiko postou-se ao lado dele. Furansu-san e Hinodeh, só podiam ser os dois, pensou ela, no mesmo instante. Ele sempre usava um anel de sinete... e lembro que me chegou a oferecê-lo, há poucos dias.

E, também no mesmo instante, seu espírito se animou, à visão das mãos dadas, a imagem que eles formavam em seu leito de brasas parecendo ser um berço de pedras preciosas, de rubis, faiscando, morrendo e renascendo a cada corrente de ar... como se os dois fossem permanecer assim até o final dos tempos.

Ah, muito triste, pensou Raiko, as lágrimas aflorando, muito triste, e ao mesmo tempo tão lindo. Como eles parecem serenos, deitados aqui, como parecem abençoados, morrendo juntos, de mãos dadas. Devem ter se decidido pela taça de veneno e partiram juntos, como um só. Muito sábio. A melhor coisa, para ambos.

Namu Amida Butsu — murmurou ela, como uma bênção, enquanto removia as lágrimas. — Vamos deixá-los em paz, amanhã resolverei o que fazer.

Raiko se afastou, com lágrimas entre amargas e doces, mas contente pela beleza que testemunhara. Mais uma vez, dois seres haviam escolhido o caminho para o ponto de encontro.

Um súbito pensamento aflorou em sua mente.

Se aqueles dois eram Furansu-san e Hinodeh, o gai-jin que escapara devia ser Taira. Isso é ótimo, muito melhor do que se fosse o contrário. Perdi uma boa fonte de informações, mas o ganho será maior a longo prazo. Taira e Fujiko são mais dóceis e têm futuro. Manipulado com habilidade, Taira poderá com a maior facilidade fornecer muitas informações, muito em breve conseguirei conversar diretamente com ele, seu japonês melhora a cada dia e já é muito bom para um gai-jin. Devo arrumar lições extras, ensinar frases políticas, não apenas a linguagem da cama e do mundo flutuante, que é tudo o que Fujiko conhece... e com um sotaque camponês ainda por cima. Com toda certeza, meu investimento a longo prazo é muito mais promissor e...

Raiko e o servo pararam ao mesmo tempo. Olharam um para o outro e depois, abruptamente, para o céu ao sul. O vento amainara.

58

Quarta-feira, 14 de janeiro:

Iocoama está acabada, William — disse o general, à primeira claridade da manhã, a voz rouca.

Estavam no penhasco, por cima da colônia, Pallidar junto com eles, todos montados. A fumaça ainda subia até ali. O rosto do general estava machucado e sujo, o uniforme rasgado, a pala do quepe chamuscada.

— Achei que era melhor chamá-lo para subir até aqui, de onde pode ter uma vista melhor. Um ato de Deus.