— Iremos para Xangai o mais depressa possível... assim que os Brocks afundarem.
Ele beijou-a no nariz.
— Ah, os Brocks. Tem certeza? Tem certeza em relação eles? Todo o nosso futuro depende disso, não é?
— E de Tess. Tenho certeza. Minhas provas são irrefutáveis e o veneno de Tess será a pá de cal na ruína deles — ela deve ter compreendido isso também ou nunca teria feito essa oferta tão mesquinha; mesmo assim, precisamos ter cuidado, independente do que sejamos em particular, o que é uma situação diferente, pelo prazo de seis meses — precisarei de todo esse tempo para levá-la a Xangai, sua reputação imaculada, a Rothwell-Gornt consolidada, suas finanças definidas... devemos agir apenas como bons amigos. Eu adoro você.
Como resposta, Angelique tornou a apertá-lo e depois murmurou:
— Os americanos têm o costume de fazer um contrato de casamento?
— Não, mas o faremos, se você quiser. — Gornt percebeu o sorriso que encobria e prometia. — Não é necessário, não é mesmo? Estamos interligados, nosso futuro é comum, somos uma única entidade mesmo agora. O sucesso depende de nosso desempenho conjunto e da minha atuação. Nunca se esqueça de que Tess é muito hábil e astuta, não será enganada com facilidade e considera que um acordo é um acordo. Mesmo assim, prometo que você conseguirá o que quer.
Tem toda razão, vou conseguir, pensou Angelique.
Chocado, Sir William largou a última página escrita por André na mesa do lado. Era tudo em francês, com a letra de André.
— Por Deus! — murmurou ele, mudando de posição em sua poltrona velha puída, mas confortável.
A sala era agradável, um fogo crepitava alegre na lareira, as cortinas fechadas contra as aragens.
Ele levantou, sentindo-se muito velho, serviu-se de um drinque, ficou olhando para os papéis, incrédulo. Tornou a sentar, folheou-os. Aparte final da carta do pai de Angelique, reconstituída de forma meticulosa, sugeria sem qualquer dúvida um esquema calculado para seduzir Malcolm Struan, outras páginas fixavam datas e detalhes do estupro pelo assassino ronin em Kanagawa e sua estranha morte na legação francesa, o nome da mama-san que fornecera o medicamento, como fora pago com os brincos “perdidos” e como André saíra remando pelo mar para dar um sumiço nas provas — algumas toalhas, as ervas e um dos dois vidros, o outro guardado como prova, agora esperando na gaveta de sua mesa na legação. Sua carta de explicação dizia:
Sir William, quando ler esta carta, eu já estarei morto. O que existe aqui só deve ser usado se eu sofrer uma morte violenta. Confesso que usei meu conhecimento para arrancar dinheiro de Angelique, isso mesmo, fiz chantagem, se quiser usar essa palavra, mas também a chantagem é um instrumento diplomático, que você também tem usado, como todos nós. Eu lhe passo estas informações porque posso ter sido assassinado ou talvez minha morte tenha parecido acidental, mas não foi necessariamente assim e, sim, provocada por ela ou com sua ajuda — outra verdade é a de que não seriam poucos os que cometeriam assassinato por ela (Babcott, McFay, Gornt) —, porque meu conhecimento e participação em seus... “crimes “ é uma palavra forte demais... em suas manipulações me transformam num alvo.
Estas páginas apresentam os indícios para pegar a pessoa que me matou e atribuir a culpa à responsável suprema. Não guardo qualquer ressentimento contra Angelique, eu a usei quando precisava, embora nunca tenha ido para a cama com ela. Minha morte pode parecer acidental, mas talvez não seja. Se assim for, muito bem, já fiz minha confissão (embora não tenha revelado nada disso ao padre Leo) e partirei para a maior aventura — tão impuro quanto a maioria, talvez mais do que a maioria, que Deus me ajude.
Por que tenho de entregar isto a você, e não a Henri? Por quê?
A assinatura era firme.
— Por que eu? — murmurou Sir William. — E como é possível que aquela moça fosse capaz de esconder tudo isso por tanto tempo, esconder de Malcolm Struan? E de George e de Hoag? Impossível, certamente impossível, André deve ter perdido o juízo... e, no entanto...
Além da carta do pai — e mesmo esta, fora do contexto, poderia ser um exagero da verdade —, o resto é apenas opinião de André, a menos que ela seja pressionada e confesse. Estas histórias poderiam ser invenções de uma mente demente. Claro que ele também a queria, não foram poucas as ocasiões em que todos notamos a maneira libidinosa como André a contemplava e ainda houve aquele estranho incidente, quando Vervene o encontrou no quarto de Angelique. E é bastante curioso que ele tenha usado a palavra “impuro” desse jeito, quando de fato o era, o pobre coitado.
Sir William estremeceu. Seratard lhe contara o segredo de André. A sífilis era endêmica em todas as camadas da sociedade, em todas as cidades e aldeias, em São Petersburgo, Londres e Paris, nos palácios e nas habitações mais vis da Casbá, podia espreitar de qualquer bordel, de qualquer dama da noite, na China ou em nosso mundo flutuante aqui.
Ah, André, por que me entregar tudo isso? É curioso que tenha morrido como morreu, de mãos dadas com a moça que comprou para destruir. Que coisa terrível! Só que ela teve uma opção, como somos levados a acreditar. Sua morte foi um acidente. Foi mesmo? Henri não tem certeza.
— É tudo muito estranho, William — dissera-lhe Henri naquela manhã.__
Os corpos... seria mais acurado falar esqueletos... davam a impressão de mortos antes do fogo chegar, sem qualquer sinal de que tentaram escapar. Apenas se encontravam estendidos lado a lado, de mãos dadas. E isso me espanta. Apesar de todos os seus defeitos, André era um sobrevivente, e num incêndio o instinto é tentar escapar, não continuar deitado, sem fazer nada. Seria impossível.
— Então qual é a resposta?
— Não sei. Pode ter sido um pacto de suicídio, consumado antes do incêndio. Veneno, nada mais se ajustaria. É verdade que ultimamente André se mostrava mórbido, ao ponto da insanidade, e precisava muito de dinheiro para pagar o contrato da mulher. Tirando isso, André um suicida? Acredita nessa possibilidade?
Não, não André, pensou Sir William, inquieto. Ele foi envenenado ou ambos. Agora, há um motivo para assassinato. Deus Todo-Poderoso, seria possível? É, sim, mas quem?
Cansado, bastante transtornado, ele fechou os olhos. Quanto mais tentava encontrar uma resposta, mais perturbado se tornava. A porta foi aberta, sem barulho. Seu empregado número um entrou, começou a cumprimentá-lo, percebeu a palidez e envelhecimento no rosto de Sir William, franziu o rosto, presumiu que ele dormia, serviu um uísque, pôs o copo na mesa ao seu lado. Seus olhos esquadrinharam a carta de André, no alto da pilha, e depois ele saiu, tão silencioso quanto entrara.
Poucos minutos mais tarde, houve uma batida na porta. Sir William despertou com um sobressalto, no momento em que Babcott estendia a cabeça pela porta.
— Tem um minuto?
— Olá, George. Claro. — Sir William guardou os papéis numa pasta, consciente da atração que pareciam irradiar. — Sente-se e tome um drinque. Qual é o problema?