— Não há nenhum. — Babcott estava ainda mais cansado do que antes. — Não ficarei muito tempo. Só queria avisar que vou tirar umas poucas horas de sono. A contagem até agora é de três sujeitos da cidade dos bêbados, o australiano que trabalhava num bar e dois vagabundos sem documentos... pode haver outros corpos nas ruínas, mas ninguém sabe quando a limpeza será concluída. E ninguém parece muito preocupado com isso.
— O que me diz da aldeia e da Yoshiwara?
— Nunca teremos uma contagem. — Babcott bocejou. — Eles parecem considerar que estatísticas desse tipo são segredos nacionais. Não se pode culpá-los, pois nós somos os forasteiros. Eu diria que não tiveram muitas baixas. O mesmo em nossa Yoshiwara, graças a Deus... sabia que cada estalagem tinha um porão de emergência?
— Muito conveniente. Seria bom instituirmos a mesma idéia aqui.
— Uma pena o que houve com André... — murmurou Babcott, provocando outra pontada de angústia em Sir William. — Tivemos muita sorte, porque a maioria do nosso pessoal não foi apanhada pelo fogo. Mas até agora não sei como Phillip conseguiu escapar vivo. Ele ficou bastante abalado pela perda de sua garota, William. Por que não lhe dá uma licença de umas poucas semanas, deixa-o ir a Hong Kong ou Xangai?
— O trabalho é a melhor terapia e preciso dele aqui.
— Talvez você tenha razão. — Outro bocejo. — Por Deus, como estou cansado! Já sabe que Hoag vai embarcar no paquete esta noite?
— Ele me avisou antes. Disse que tinha conversado com você, que respondeu que não precisava mais dele aqui. Imagino que Tess ordenou que ele voltasse assim que soubesse... se ela não estivesse esperando.
— Deve ser isso mesmo. Mas em parte é pessoal, William, pois ele se mostra ansioso em voltar para a índia, acha que encontrará a felicidade por lá. — Babcott franziu o rosto, reprimiu um bocejo. — Ele lhe contou o que havia na carta de Tess?
— A carta para Angelique? Não. Disse que Tess não lhe mostrou o que escrevera, embora seja difícil acreditar nisso. — Sir William observava-o atentamente. — Heavenly esteve aqui antes. Também não disse nada a respeito, apenas informou que Angelique queria que eu testemunhasse sua assinatura numa carta que está enviando para Tess.
Um pouco do cansaço de Babcott se desvaneceu.
— Eu gostaria muito de saber o que diz a carta.
— Serei apenas testemunha da assinatura. Não preciso tomar conhecimento do conteúdo.
Babcott suspirou, tornou a bocejar. — Lamento profundamente por ela, gostaria de poder ajudar, faria qualquer coisa... uma moça tão boa, para quem a vida tem sido tão injusta. Com ela e com Malcolm. Seja como for, estou contente porque ela não vai nos deixar por enquanto. Tenho certeza que Angelique dará uma esposa espetacular para alguém. Tornarei a vê-lo dentro de algumas horas.
— Durma bem e obrigado por seu excelente trabalho. Por falar nisso — acrescentou Sir William, não querendo que ele se retirasse, mas receando que, se Babcott ficasse, poderia se sentir tentado a partilhar o que André revelara, pedir seu conselho —, quando vai ver Anjo de novo?
— Dentro de uma ou duas semanas, assim que acabar o láudano que deixei com ele... sem isso, Anjo vai sofrer muito.
— Não há esperança para ele?
— Não. Só vai durar mais uns poucos meses, os testes foram bastante acurados... suas entranhas se deterioraram. Yoshi é o nosso homem. — Outro bocejo. — Acha que foi Anjo ou Yoshi, se não mesmo ambos, que ordenaram o incêndio criminoso?
— Os dois, ou nenhum dos dois, nunca saberemos. — Ele observou Babcott se encaminhar para a porta, trôpego. — George, em termos médicos, se uma mulher estivesse sedada, um homem poderia possuí-la sem que ela soubesse?
Babcott piscou, aturdido, virou-se no mesmo instante, a fadiga desvanecida.
— Por que pergunta isso?
— Apenas um pensamento súbito, por você ter mencionado o láudano. Há poucos dias, Zergeyev expôs algumas teorias incríveis sobre drogas, o que havia de bom e ruim nelas. Isso poderia acontecer?
Depois de uma pausa, Babcott acenou com a cabeça, não acreditando nessa explicação. Sabia como a mente de Willie era sutil e especulou sobre o motivo da pergunta, mas era esperto demais para perguntar outra vez.
— Se a dose fosse maciça e o homem não se comportasse como um selvagem, sim, não seria problema.
Ele esperou, mas Sir William limitou-se a balançar a cabeça, pensativo. Diante disso, Babcott acenou com a mão e retirou-se.
Mais uma vez, Sir William abriu a pasta.
Seus dedos tremeram quando releu a carta de André. É bem claro. A droga em Kanagawa desencadeou a sucessão de eventos, a droga dada por George. Se ela tivesse despertado, o homem a mataria, não resta a menor dúvida quanto a isso. Assim, ela foi salva, mas também destruída. E por que o homem não a matou de qualquer maneira? Por que a deixou viva? Não faz sentido. E o que aconteceu na legação francesa naquela outra noite, quando ele voltou? Se não fosse por George...
E o que pensar de George? Se ele foi capaz de lhe dar uma droga assim, para ajudá-la a dormir, para proteger sua sanidade, é claro que poderia fazer a mesma coisa com André, para remover um chantagista da mulher a quem ama, com toda certeza. Uma dose excessiva da mesma droga...
George Babcott? Oh, Deus, devo estar perdendo o juízo! Seria impossível para ele fazer uma coisa dessas!
Ou será que não?
E Angelique... seria impossível para ela fazer tudo isso!
Ou será que não?
O que vou fazer?
60
— Com licença, senhor — disse Bertram. — Miss Angelique está aqui.
— Mande-a entrar. E pode se retirar em seguida. O jantar será às nove horas. Providencie para que o Belle não zarpe sem os meus despachos.
— Pois não, senhor. É apenas ela. O Sr. Skye não veio junto.
Sir William levantou-se de sua velha cadeira, cansado, sentindo-se mal. A pasta com o material de André continuava em cima da mesa, virada para baixo.
Angelique entrou, fisicamente tão magnética quanto sempre, mas diferente, o rosto rígido, com uma força latente que ele não pôde interpretar. De casaco, touca e luvas. O preto se ajusta bem a ela, pensou Sir William, contrasta com sua pele alva, tão bela e tão jovem, mais jovem do que Vertinskya. Estranho... ela estivera chorando?
— Boa noite. Como vai, Angelique?
— Ah... vou muito bem, obrigada. — A voz era apática, diferente de sua personalidade controlada habitual.
— O Sr. Skye informou-o que eu precisava que testemunhasse minha assinatura esta noite?
— Informou, sim. — Ele foi para sua mesa, a concentração afetada pelas imagens que André descrevera com tanto vigor. — Eu... por favor, sente-se.