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No crepúsculo, à beira da terra de ninguém, ao abrigo de uma casa na aldeia meio concluída, uma sombra se deslocou. E depois outra. Dois homens espreitavam, escondidos, observando. Em algum lugar, no meio dos telheiros e abrigos temporários da aldeia, em meio às habitações parcialmente reconstruídas, em meio às conversas abafadas, uma criança começou a chorar, para ser logo silenciada.

Onde antes a terra de ninguém fora uma sucessão de colinas e vales de lixo e refugos, a maior parte fora consumida pelo fogo e o resto assentara mais fundo na terra, e por cima de tudo se estendera uma camada de cinzas da qual ainda saíam filetes de fumaça. Só o poço de tijolos era proeminente. A primeira sombra transformou-se em Phillip Tyrer e ele correu até o poço, meio encurvado, agachando-se ao seu lado.

Cauteloso, correu os olhos ao redor. Até onde podia determinar, ninguém o vira. No outro lado, a cidade dos bêbados não passava de escombros fumegantes, detritos retorcidos, uns poucos incêndios isolados ainda ardendo, entre barracas de lona temporárias. Havia uns poucos homens por ali, belicosos, quase todos encolhidos contra o frio, sentados em barris virados, bebendo cerveja, uísque e rum saqueados.

Com o maior cuidado, Phillip inclinou-se para a beira do poço e assoviou. Lá de baixo veio um assovio em resposta. Ele tornou a se abaixar, reprimiu um bocejo nervoso. Momentos depois uma mão alcançou o topo dos tijolos. A cabeça de Hiraga apareceu. Phillip fez um sinal para ele. Em silêncio, Hiraga agachou-se ao seu lado, depois Akimoto. Ambos usavam casacos acolchoados e quimonos, por cima de calças largas, e carregavam as espadas camufladas com roupas extras. Cautelosos, encolheram-se quando três homens no lado da cidade dos bêbados começaram a atravessar o lugar em que antes existira uma viela, desviando-se entre os destroços do armazém. Um deles cantava uma canção do mar. Muito tempo depois de sumirem de vista, sua voz de barítono ainda ressoava, trazida pelo vento.

— Seguir eu, mas tomar cuidado!

Tyrer correu de volta à aldeia e parou ao lado do outro homem, junto ao bangalô inacabado. Jamie McFay. Quando estava seguro, Hiraga e Akimoto se juntaram aos dois, correndo com mais agilidade, sem qualquer barulho. Jamie McFay disse:

— Aqui, depressa.

Ele abriu o saco e entregou-lhes trajes de marujo, com casacos de lã e sapatos. Hiraga e Akimoto despiram-se, puseram as roupas de marujo. Os trajes descartados foram para o saco, que Akimoto pendurou nas costas. Tyrer viu Hiraga guardar uma pistola num bolso lateral.

Demorara apenas um ou dois minutos. Jamie seguiu na frente, ao longo do trecho em que antes existia a rua principal da aldeia... e em breve voltaria a existir. Podiam sentir olhos por toda parte. No céu, a lua saiu de trás das nuvens por um instante. Numa reação automática, Hiraga e Akimoto se congelaram em sombras, prontos para empunharem suas armas, criticando mentalmente a negligência inepta dos outros dois. A lua logo desapareceu e eles continuaram.

A casa do shoya estava três quartos reconstruída, a loja na frente vazia, mas os aposentos por trás concluídos, em caráter temporário, e habitáveis. Jamie esgueirou-se entre pilhas de vigas e shojis, foi bater numa porta improvisada. A porta se abriu e ele entrou. Os outros seguiram-no para a escuridão. A porta foi fechada.

Um momento depois, um fósforo foi riscado, e o pavio da vela aceso. O shoya estava sozinho, pálido de cansaço e de medo, que se esforçava em ocultar. Na mesa baixa, havia frascos de saquê e um pouco de comida. Hiraga e Akimoto devoraram a comida e esvaziaram dois frascos em segundos.

— Obrigado, shoya — disse Hiraga. — Não esquecerei.

— Tome aqui, Otami-sama. — O shoya entregou-lhe uma pequena bolsa com moedas. — São cem oban de ouro e vinte mexicanos.

Havia um pincel na mesa, a pena e o tinteiro preparados, ao lado do papel. Hiraga assinou o recibo.

— E meu primo?

— Sinto muito, mas isso é tudo o que consegui providenciar em tão pouco tempo — respondeu o shoya, lançando um rápido olhar para Jamie, que os outros não perceberam.

— Não importa. — Hiraga não acreditava nele, mas também Akimoto não tinha crédito, ninguém para pagar o empréstimo. — Obrigado. E, por favor, cuide para que meu fiador receba isto, o mais depressa possível.

Ele entregou um pequeno pergaminho. Era uma mensagem de despedida codificada para a mãe e o pai, relatando seu plano e dando a notícia sobre Sumomo. Por precaução, não continha nomes reais. Em inglês, Hiraga acrescentou:

— Taira-sama, pronto. Aqui acabado.

— Pronto, Jamie? — indagou Tyrer.

Ele se sentia estranho, nauseado, sem saber se a causa era excitamento ou medo, fadiga ou desespero. Desde o incêndio, o rosto de Fujiko aflorava de seu subconsciente a intervalos de poucos minutos, gritando, em chamas.

— Melhor apressar, Otami-sama — disse ele a Hiraga. Ambos haviam combinado que era melhor nunca mais usar Hiraga ou Nakama. — Baixar mais gorro sobre rosto. Domo, shoya, mataneh. Obrigado, shoya, boa noite.

Ele tornou a sair para a rua. Depois de verificar que era seguro, fez um sinal para os outros.

— Vá na frente, Jamie — sussurrou ele.

Em súbito pânico, todos se esgueiraram para as sombras, enquanto uma patrulha de granadeiros se aproximava e passava. Voltando a respirar, Tyrer murmurou:

— Eles estar procura saqueadores, ladrões, wakamarisu ka?

Wakamarisu.

Mais uma vez Jamie seguiu à frente, desviando-se entre os escombros, na direção do cais no outro lado do passeio, perto do lugar em que antes se erguia o prédio do Guardian. Havia muitos homens vagueando por ali, olhando impressionados para as ruínas da aldeia, Yoshiwara e cidade dos bêbados ou apenas passeando a esmo, pois ainda era muito cedo para dormir. Reconhecendo alguns, Jamie passou a andar mais devagar, não querendo atrair qualquer atenção. Dmitri era um deles, voltando para casa. Jamie não pôde reprimir um sorriso amargo. Naquela manhã, Dmitri, radiante, procurara-o para informar que descobrira Nemi durante a madrugada e que ela estava bem, tinha apenas umas poucas equimoses, salvara-se quase ilesa.

— Graças a Deus, Dmitri!

— A primeira coisa que ela disse foi Jami-san bem? Eu disse que sim e ela me deu um abraço para você. Dei o seu recado, de que a encontraria assim que fosse possível.

— Obrigado. Isso tira uma carga da minha cabeça. Receava que ela tivesse morrido. Acabei encontrando sua estalagem, mas era apenas uma pilha de cinzas, inclusive nossa casa. Não descobri ninguém que... Graças a Deus.

— Lembra o que eu...

— Claro que lembro, mas primeiro tenho de conversar com ela. Afinal, Nemi não é uma mera peça do mobiliário.

— Ei, companheiro, vamos com calma! Nem pense nisso. Não tive a intenção de insinuar qualquer coisa...