— Boa noite, miss Maureen. Com licença, Sir William, mas talvez queira ver isto imediatamente. — Tyrer entregou a tradução. — Providenciarei para que os despachos sejam levados para bordo.
Ele tratou de se afastar, na direção do comissário de bordo, não querendo estar por perto quando ocorresse a inevitável explosão. O comissário era pequeno e dispéptico e a fila irregular de homens se acotovelando para chegar até ele ainda era comprida. Tyrer foi até o começo da fila, ignorando os protestos de “Espere a sua vez!”, e declarou:
— Desculpe, senhor, mas são ordens de Sir William. Negócios do governo de sua majestade. Um recibo, por favor.
— Está bem, está bem! Por que a pressa?
Enquanto o comissário fazia o registro em seu livro, Tyrer lançou um olhar para Sir William, que fora se postar sob um lampião e lia a tradução, com os olhos contraídos. Enquanto ele observava, o rosto se contorceu, os lábios começaram a murmurar palavrões, levando os homens nas proximidades a recuar, chocados, não por causa da linguagem, mas por ser tão inesperada. Tyrer soltou um gemido e tornou a virar as costas.
O documento era dos roju, assinado pelo tairo Nori, ríspido, sem os floreios habituais, e endereçado com a maior desfaçatez Ao Líder dos Gai-jin. Ele traduzira da melhor forma que pôde, com o mesmo estilo, só interpolando quando era necessário:
Os roju dão os parabéns a você e aos outros gai-jin por terem escapado com vida e pouco mais dos incêndios ateados por descontentes e revolucionários. O governador de Kanagawa enviará amanhã quinhentos cules para ajudá-los na evacuação de Iocoama, de acordo com as inequívocas advertências dos deuses, e de acordo com os desejos do imperador, que lhe foram transmitidos muitas vezes. Quando vocês voltarem, se voltarem, devem nos dar um aviso com bastante antecedência. Serão providenciadas acomodações para os gai-jin selecionados em Deshima, no porto de Nagasáqui, de onde, como no passado, serão conduzidos no futuro todo o comércio e negócios dos gai-jin. Um comunicado cordial.
— Tyrer!
Ele fingiu não ter ouvido, continuou de costas para Sir William, aceitou o recibo do comissário, os homens impacientes na fila gritando em graus variados de irritação:
— Depressa, pelo amor de Deus! Não queremos passar a noite inteira aqui! Ei, ele já voltou!
O cúter vazio, voltando do Belle, estava atracando. Tyrer notou que Jamie não se encontrava a bordo. O contramestre inclinou a cabeça para fora da casa do leme e berrou:
— Todos a bordo, os que vão embarcar!
Na agitação imediata, Maureen se aproximou.
— Phillip, quando Jamie vai voltar?
— No último barco, com toda certeza, se não antes — respondeu ele, sem saber se Jamie contara o plano a ela. — Ainda resta uma hora, ou mais.
— Tyrer!
— Desculpe, mas tenho de ir agora. Pois não, senhor? — gritou ele. Tyrer respirou fundo, preparando-se mentalmente, e se afastou apressado.
— Em meia hora, Phillip — disse Sir William, vesgo de tanta raiva —, em apenas meia hora, precisarei que você traduza minha resposta, que será vigorosa, bastante acurada.
— Certo, senhor. Antes que eu me esqueça...
— Vá procurar... ah, lá está ele! Eu sabia que o tinha visto por aqui!
Um olhar para o rosto de Sir William foi suficiente para fazer com que a multidão silenciasse e lhe desse passagem, todos na maior atenção.
— Pallidar, chame os dragões. Quero que entregue um comunicado cordial ao governador de Kanagawa... imediatamente.
— Esta noite, senhor? — indagou Pallidar, para perceber a expressão no rosto dele e se apressar em acrescentar: — Claro, senhor. Imediatamente.
— Com licença, Sir William — disse Tyrer, falando depressa, antes que o ministro britânico pudesse se afastar. — Não tive tempo de lhe falar antes, mas ajudei dois estudantes japoneses a embarcar. Eles queriam viajar, visitar a Inglaterra. Salvaram minha vida ontem à noite. Espero que não se incomode.
— Por eles terem salvo sua vida? Tenho minhas dúvidas. — Os olhos penetraram fundo em Tyrer. — Se você se tornou agente de viagens durante o horário de expediente, suponho que terá uma resposta satisfatória, caso eu a exija. Pallidar, quero que siga com todo seu destacamento, dentro de uma hora, e entregue minha mensagem de uma forma um tanto rude!
Sir William afastou-se. Pallidar assoou o nariz, ainda bastante resfriado.
— O que houve com ele?
Tyrer inclinou-se e contou sobre o ultimato.
— Por Deus, não é de admirar! Mas que desfaçatez! Na verdade, até que é bom, pois agora teremos alguma ação. Todo esse suspense só serve para irritar o general, junto com suas hemorróidas.
Ele riu, mais de nervosismo do que pelo gracejo antigo. Nesse momento, Hoag chegou ao cais, ofegante, ainda usando a sobrecasaca de operar, as mangas e o peito rígidos de sangue ressequido, cartola na cabeça, carregando valises e pacotes.
— Pensei que tinha me atrasado. Qual é a graça?
— Tem bastante tempo — disse Tyrer.
E ele especulou, assim como Pallidar, o que haveria na carta de Angelique, cuja assinatura Sir William testemunhara, e que Hoag levaria para Hong Kong. Todos sabiam apenas que era uma resposta à carta, também ainda um mistério, entregue a Angelique quando Hoag tivera a certeza de que ela não esperava uma criança de Malcolm. Desde o primeiro dia do retorno de Hoag, as linhas gerais do ultimato de Tess eram do conhecimento geral e tema de acalorados debates particulares.
— Espero que faça uma boa viagem. Viajará para a índia em seguida, não é?
— Isso mesmo. Estarei lá no mês que vem. — O rosto feio desmanchou-se num sorriso. — Mal posso esperar. Podem ir me visitar. Garanto que vão adorar.
Pallidar disse:
— A Índia é meu próximo posto. Acabo de ser informado. A fronteira, Hindu Kush, passo Khyber.
Embora falasse em tom jovial, Pallidar odiara secretamente a perspectiva. Havia mortes demais naquele inferno, uma bala disparada do nada, uma adaga surgindo no meio da noite, poços envenenados, nenhuma glória ali, apenas violência e morte, tentar permanecer vivo naquela paisagem rochosa e árida, onde nada vicejava, a não ser a morte. E, no entanto, era um lugar vital para o império, pois passava por ali a rota histórica de invasão da índia britânica, por hordas mongóis, persas ou russas. Uma terrível premonição o dominou e ele não pôde resistir à tentação de acrescentar:
— Não há sepultamentos no mar ali, doutor.
— Não, nenhum, absolutamente nenhum — respondeu Hoag, interpretando errado o comentário. Depois, ele passou o braço pelos ombros de Pallidar, num gesto afetuoso. — Você é um bom sujeito, Settry. Se eu puder ajudá-lo na índia, será fácil me encontrar. Vai adorar aquilo lá. Boa sorte.