Ele se sentou. Seu corpo parecia ileso. Apalpou o rosto. Não estava mais usando óculos.
Então, do nada informe que o cercava, chegou-lhe aos ouvidos um barulho: as batidinhas suaves de algo que adejava, se açoitava e se debatia. Era um barulho que inspirava piedade, mas também era ligeiramente obsceno. Teve a desconfortável sensação de que estava bisbilhotando alguma coisa furtiva, vergonhosa.
Pela primeira vez, desejou estar vestido.
Mal acabara de formular mentalmente esse desejo, apareceram vestes a uma pequena distância. Apanhou-as e vestiu-as: eram macias, limpas e quentes. Era extraordinário como tinham aparecido, instantaneamente, no momento em que as desejara...
Ele se levantou e relanceou ao redor. Estaria em alguma ampla Sala Precisa? Quanto mais olhava, mais havia para ver. Um enorme domo de vidro faiscava ao sol, lá no alto. Talvez fosse um palácio. Tudo era imóvel e silencioso, exceto por aquelas estranhas lamúrias e pancadas surdas que vinham dali perto em meio à névoa...
Harry se virou lentamente no mesmo lugar, e o ambiente pareceu se reinventar diante de seus olhos. Um grande vão, claro e limpo, um salão muito maior do que o Salão Principal com aquele teto abobadado de vidro. Vazio. Ele era a única pessoa ali, exceto por...
Encolheu-se. Localizara a coisa que estava produzindo os ruídos. Tinha a forma de uma criancinha nua, enroscada no chão, a pele em carne viva e grossa, parecendo açoitada, e tremia embaixo de uma cadeira onde fora deixada, indesejável, posta fora de vista, tentando respirar.
Teve medo. Pequena, frágil e ferida como estava, Harry não quis se aproximar dela. Contudo, ele foi se acercando devagar, pronto para saltar para trás a qualquer momento. Logo estava perto o suficiente para tocá-la, ainda que não conseguisse se obrigar a isso. Sentiu-se um covarde. Devia consolá-la, mas ela lhe causava repugnância.
— Não há nada que você possa fazer.
Ele virou-se depressa. Alvo Dumbledore vinha ao seu encontro, animado e aprumado, trajando amplas vestes azul-escuras.
— Harry. — Ele abriu bem os braços, e suas mãos estavam, ambas, inteiras, brancas e ilesas. — Garoto maravilhoso. Homem corajoso, muito corajoso. Vamos caminhar.
Aturdido, Harry acompanhou-o; Dumbledore se afastou da criança flagelada que choramingava, e o conduziu a duas cadeiras em que Harry não reparara antes, dispostas a alguma distância sob aquele teto alto e cintilante. Dumbledore sentou-se em uma delas e Harry se largou na outra, fitando o seu antigo diretor. Os longos cabelos e barbas prateadas de Dumbledore, os olhos azuis penetrantes por trás dos oclinhos de meia-lua, o nariz torto: exatamente como ele lembrava. Contudo...
— Mas você está morto — disse Harry.
— Ah, sim — respondeu Dumbledore, sem rodeios.
— Então... eu estou morto também?
— Ah — disse o diretor com um sorriso ainda maior. — Essa é a dúvida, não é? De modo geral, meu caro rapaz, acho que não.
Eles se encararam, o velho ainda sorrindo.
— Não? — repetiu Harry. — Não.
— Mas... — Harry levou instintivamente a mão à cicatriz em forma de raio. Aparentemente sumira. — Mas eu deveria ter morrido... não me defendi! Deliberadamente deixei que me matasse!
— E isso, acho eu, terá feito toda a diferença.
A felicidade parecia se irradiar de Dumbledore como luz, como fogo: Harry jamais vira um homem tão absoluta e palpavelmente satisfeito.
— Explique — pediu Harry.
— Mas você já sabe. — E Dumbledore girou os polegares.
— Eu deixei que me matasse. Não foi?
— Foi — assentiu Dumbledore. — Continue!
— Então a parte da alma dele que estava comigo... Dumbledore assentiu ainda mais entusiasticamente, instando Harry a prosseguir, um amplo sorriso de incentivo no rosto.
— ... se foi?
— Ah, sim! Ele a destruiu. A sua alma é inteira e totalmente sua, Harry.
— Mas então...
Harry espiou por cima do ombro, para onde a pequena criatura mutilada tremia embaixo da cadeira.
— Que é aquilo, professor?
— Uma coisa além da nossa possibilidade de ajudar.
— Mas se Voldemort usou aquela Maldição da Morte — recomeçou Harry —, e desta vez ninguém morreu por mim... como posso estar vivo?
— Acho que você sabe. Faça uma retrospectiva. Lembre o que ele fez em sua ignorância, cobiça e crueldade.
Harry pensou. Deixou o seu olhar vaguear pelo ambiente. Se de fato fosse um palácio o lugar em que estavam, era estranho, com cadeiras em pequenas fileiras e gradis aqui e ali, e Dumbledore e a criatura atrofiada embaixo da cadeira eram os únicos seres presentes. Então a resposta aflorou aos seus lábios facilmente, sem esforço.
— Ele tirou o meu sangue — respondeu Harry.
— Exato! — exclamou Dumbledore. — Ele tirou o seu sangue e usou-o para reconstruir o próprio corpo vivente! O seu sangue nas veias dele, Harry, a proteção de Lílian nos dois! Ele prendeu você à vida enquanto ele viver!
— Eu vivo... enquanto ele viver? Mas pensei... pensei que fosse o contrário! Pensei que nós dois tínhamos que morrer? Ou dá no mesmo?
Harry foi distraído pelo choro e as batidas da criatura angustiada às suas costas, e tornou a se virar para vê-la.
— Tem certeza de que não podemos fazer nada?
— Não há ajuda possível.
— Então me explique... melhor — pediu Harry, e Dumbledore sorriu.
— Você foi a sétima Horcrux, Harry, a Horcrux que ele nunca pretendeu criar. Voldemort deixou a alma tão instável que ela se fragmentou quando ele cometeu aqueles atos de indizível maldade, o assassinato dos seus pais, a tentativa de matar uma criança. Mas o que escapou daquele quarto foi ainda menos do que ele percebeu. Voldemort deixou ali mais do que o seu corpo. Deixou uma parte de si mesmo presa a você, a pretensa vítima que sobrevivera.
“E o conhecimento dele permaneceu lamentavelmente incompleto, Harry! Aquilo a que Voldemort não dá valor ele não se dá sequer o trabalho de compreender. De elfos domésticos e contos infantis, amor, lealdade e inocência, Voldemort não entende nada. Nadinha. Que todos tenham um poder que supere o dele, um poder que supere o alcance da magia, é uma verdade que ele jamais compreendeu.
“Ele tirou o seu sangue acreditando que isto o fortaleceria. Integrou ao próprio corpo uma parte mínima do encantamento com que sua mãe o recobriu quando morreu para salvá-lo. O corpo dele guarda vivo o sacrifício de Lílian, e enquanto esse encantamento sobreviver, você também sobreviverá, assim como a última esperança de Voldemort.”
Dumbledore sorriu para Harry, e o garoto o encarou.
— E o senhor sabia disso? Sabia... o tempo todo?
— Tive um palpite. Mas os meus palpites normalmente têm sido muito bons — respondeu ele, feliz, e os dois ficaram sentados em silêncio por um tempo que pareceu muito longo, enquanto a criatura continuava a choramingar e tremer.
— Tem mais — disse Harry. — Tem mais coisas. Por que a minha varinha partiu a que ele pediu emprestada?
— Quanto a isso, não tenho muita certeza.
— Dê um palpite, então — pediu Harry, fazendo Dumbledore rir.
— O que você precisa entender, Harry, é que você e Lord Voldemort empreenderam juntos uma jornada ao reino de uma magia até agora desconhecida e não comprovada. Imagino, porém, que tenha acontecido o seguinte, e não há precedentes, nem fabricante de varinha algum, acho eu, que pudesse jamais ter predito ou explicado isso a Voldemort.
“Sem querer, como você agora sabe, Lord Voldemort duplicou o vínculo entre vocês quando retomou a forma humana. Uma parte de sua alma já estava presa a você, e, pensando em se fortalecer, ele incorporou uma parte do sacrifício de sua mãe. Se pudesse ter compreendido o poder exato e terrível daquele sacrifício, talvez não tivesse ousado tocar no seu sangue... mas se ele fosse capaz de compreender, não seria Lord Voldemort, e, talvez, nunca tivesse matado ninguém.