“Tendo garantido essa dupla vinculação, tendo amarrado os seus destinos juntos, mais seguramente do que dois bruxos jamais fizeram em toda a história, Voldemort atacou você com uma varinha que possuía o mesmo núcleo que a sua. Então, ocorreu algo muito estranho, como sabemos. Os núcleos reagiram de uma forma que Lord Voldemort, que nunca soube que a sua varinha era gêmea da dele, não poderia prever.
“Ele sentiu mais medo do que você naquela noite, Harry. Você tinha aceitado, e até considerado bem-vinda, a idéia da morte, coisa que Lord Voldemort jamais foi capaz de fazer. Sua coragem venceu, sua varinha dominou a dele. E ao fazer isso, aconteceu entre as duas varinhas uma coisa que refletiu a relação entre os seus donos.
“Acredito que a sua varinha tenha absorvido parte do poder e das qualidades da varinha de Voldemort naquela noite, ou seja, o objeto captou um pouco do próprio Voldemort. Então, a sua varinha o reconheceu enquanto ele o perseguia, reconheceu um homem que era, ao mesmo tempo, parente e inimigo mortal, e regurgitou contra Voldemort um pouco de sua própria magia, magia muito mais poderosa do que qualquer coisa que a varinha de Lúcio pudesse realizar. Sua varinha passou a conter simultaneamente o poder de sua enorme coragem e da perícia letal de Voldemort: que chance teria aquela mísera varinha de Lúcio Malfoy?”
— Mas, se a minha varinha ficou tão poderosa, como Hermione pôde quebrá-la? — perguntou Harry.
— Meu caro rapaz, seus efeitos excepcionais eram dirigidos apenas a Voldemort, que mexeu de forma tão imprudente com as mais profundas leis da magia. Apenas contra ele aquela varinha era anormalmente poderosa. Nos demais casos, era uma varinha como outra qualquer... embora, sem dúvida, fosse boa — concluiu Dumbledore bondosamente.
Harry parou refletindo um longo tempo, ou talvez segundos. Ali, era muito difícil ter certeza de dimensões.
— Ele me matou com a sua varinha.
— Ele não conseguiu matar você com a minha varinha — corrigiu-o Dumbledore. — Acho que podemos concordar que você não está morto... embora, é claro — acrescentou ele, como se receasse ser indelicado —, eu não esteja minimizando os seus sofrimentos que, seguramente, foram rigorosos.
— Mas estou me sentindo ótimo no momento — replicou Harry, olhando para suas mãos limpas e intactas. — Exatamente onde estamos?
— Bem, eu ia lhe perguntar isso — disse Dumbledore, olhando ao redor. — Onde você diria que estamos?
Até Dumbledore perguntar, Harry não fazia idéia. Então, descobriu que tinha uma resposta pronta para lhe dar.
— Parece — disse, lentamente — a estação de King’s Cross. Exceto que muito mais limpa e vazia, e, pelo visto, não há trens.
— A estação de King’s Cross! — Dumbledore estava dando gargalhadas. — Valha-me Deus, sério?
— Bem, onde o senhor acha que estamos? — perguntou Harry, um pouco na defensiva.
— Meu caro rapaz, não faço a menor idéia. Como costumam dizer, a festa é sua.
Harry não entendeu o que isso queria dizer; Dumbledore estava aborrecendo-o. Olhou carrancudo para o diretor, então se lembrou de uma pergunta muito mais urgente do que a presente localização.
— As Relíquias da Morte — disse, e ficou satisfeito ao ver que as palavras tinham apagado o sorriso do rosto de Dumbledore.
— Ah, sim — disse ele, parecendo até um pouco preocupado.
— Então?
Pela primeira vez desde que Harry conhecera Dumbledore, ele pareceu menos que um homem idoso, muito menos. Pareceu, por um momento fugaz, um garoto apanhado em uma travessura.
— Será que pode me perdoar? Será que pode me perdoar por não ter confiado em você? Por não ter lhe dito? Harry, eu só receei que você fracassasse como eu. Só temi que repetisse os meus erros. Imploro o seu perdão, Harry. Já faz algum tempo que sei que você é um homem melhor do que eu.
— Do que está falando? — perguntou o garoto, assustado com o tom de Dumbledore, com as lágrimas repentinas em seus olhos.
— As Relíquias, as Relíquias — murmurou Dumbledore. — O sonho de um homem desesperado!
— Mas elas são reais!
— Reais e perigosas, além de uma sedução para os tolos. E eu próprio fui um tolo. Mas você sabe disso, não é? Não tenho mais segredos para você. Você sabe.
— Que é que eu sei?
Dumbledore virou-se de frente para Harry e as lágrimas ainda cintilavam em seus olhos muito azuis.
— Senhor da Morte, Harry, senhor da Morte! Em última análise, terei sido melhor que Voldemort?
— Claro que foi. Claro... como pode fazer essa pergunta? O senhor nunca matou quando pôde evitar!
— Verdade, verdade. — E ele parecia uma criança precisando de reafirmação. — Contudo, eu, também, busquei um modo de vencer a morte, Harry.
— Não como ele. — Depois de toda a sua raiva por Dumbledore, era estranho sentar ali, sob aquele teto abobadado, e defendê-lo de si mesmo. — Relíquias, não Horcruxes.
— Relíquias — murmurou Dumbledore —, não Horcruxes. Exatamente.
Houve uma pausa. A criatura choramingou, mas Harry não se virou.
— Grindelwald as estava procurando também? — perguntou ele. Dumbledore fechou os olhos por um momento e assentiu.
— Foi isso, acima de tudo, que nos aproximou — disse ele, em voz baixa. — Dois rapazes inteligentes e arrogantes com uma obsessão em comum. Ele quis ir a Godric’s Hollow, como você certamente adivinhou, por causa do túmulo de Ignoto Peverell. Queria explorar o local em que o terceiro irmão falecera.
— Então, é verdade? A história toda? Os irmãos Peverell...
— ... eram os três irmãos do conto — confirmou Dumbledore. -Ah, sim, acho que sim. Agora, se encontraram a Morte em uma estrada deserta... acho mais provável que os irmãos Peverell fossem simplesmente bruxos talentosos e temerários que conseguiram criar esses objetos poderosos. A história de que seriam as próprias Relíquias da Morte me parece o tipo de lenda que pode ter surgido em torno de suas criações.
“A capa, como você agora sabe, passou durante séculos de pai para filho, de mãe para filha, até o último descendente vivo de Ignoto, que nasceu na aldeia de Godric’s Hollow.”
Dumbledore sorriu para Harry.
— Eu?
— Você. Você conjecturou, eu sei, por que a capa estava em meu poder na noite em que seus pais morreram. Tiago a mostrara a mim poucos dias antes. Ela explicava muitos dos seus malfeitos, na escola, que passavam despercebidos! Mal consegui acreditar no que via. Pedi a capa emprestada para examiná-la. Havia muito tempo que desistira do meu sonho de juntar as Relíquias, mas não pude resistir, não pude deixar de vê-la de perto... Era uma capa como eu jamais vira, imensamente velha, perfeita sob todos os aspectos... então seu pai morreu, e eu tinha finalmente duas Relíquias só para mim!
Seu tom era insuportavelmente amargurado.
— A capa não teria ajudado meus pais a sobreviver — apressou-se Harry a dizer. — Voldemort sabia onde meu pai e minha mãe estavam. A capa não os tornaria à prova de maldição.
— Verdade — suspirou Dumbledore. — Verdade.
Harry aguardou, mas o diretor não disse mais nada, então, ele o instigou.
— Então, desistiu de procurar as Relíquias quando viu a capa?
— Ah, sim — respondeu Dumbledore, com a voz fraca. Ele parecia fazer força para fitar Harry. — Você sabe o que aconteceu. Você sabe. Você não pode me desprezar mais do que eu me desprezo.
— Mas eu não o desprezo...
— Então deveria. — Dumbledore inspirou profundamente. — Você conhece o segredo da precária saúde da minha irmã, o que aqueles trouxas fizeram, no que a transformaram. Você sabe como o meu pobre pai buscou vingança e pagou por isso, morrendo em Azkaban. Você sabe como minha mãe abriu mão da própria vida para cuidar de Ariana.