Dumbledore deu uma palmadinha afetuosa na mão de Harry, e o garoto ergueu os olhos para o velho e sorriu; não pôde se conter. Como poderia continuar zangado com Dumbledore, agora?
— Por que precisou dificultar tanto as coisas? O sorriso de Dumbledore foi trêmulo.
— Receio que tenha contado com a srta. Granger para refreá-lo, Harry. Tive medo que sua cabeça quente pudesse dominar o seu bom coração. Senti pavor que, se lhe apresentasse logo os fatos sobre esses objetos tentadores, você pudesse se apoderar das Relíquias, como fiz, no momento errado, pelos motivos errados. Se pusesse as mãos nelas, eu queria que fossem suas sem perigo. Você é o verdadeiro senhor da Morte, porque o verdadeiro senhor não busca fugir da morte. Ele aceita que deve morrer, e compreende que há coisas piores, muito piores do que a morte no mundo dos viventes.
— E Voldemort nunca ouviu falar nas Relíquias?
— Acho que não, porque ele não reconheceu a Pedra da Ressurreição quando a transformou em Horcrux. Mas, mesmo que tivesse ouvido falar, Harry, duvido que se interessasse por qualquer delas, exceto a primeira. Não iria achar que precisasse da capa e, quanto à pedra, quem ele iria querer ressuscitar? Ele teme os mortos. Ele não ama.
— Mas o senhor esperava que ele saísse em busca da varinha?
— Tive certeza de que tentaria, desde que a sua varinha derrotou Voldemort no cemitério de Little Hangleton. A princípio, ele receou que você o tivesse vencido por possuir maior perícia. Uma vez que seqüestrou Olivaras, porém, ele descobriu a existência dos núcleos gêmeos. Achou que isso explicava tudo. Entretanto, a varinha emprestada não apresentou melhor resultado contra a sua! Então, Voldemort, em vez de se perguntar que qualidade havia em você que tornava sua varinha tão forte, que dom você possuía que lhe faltava, naturalmente saiu à procura da única varinha que, diziam, derrotaria qualquer outra. Para ele, a Varinha das Varinhas se tornara uma obsessão que rivalizava à que tinha por você. Ele acredita que a Varinha das Varinhas elimina sua última fraqueza e o torna verdadeiramente invencível. Coitado do Severo...
— Se o senhor planejou morrer nas mãos de Snape, pretendia que ele acabasse dono da varinha, não?
— Admito que tive essa intenção, mas não se realizou como eu pretendi, não é?
— Não. Essa parte saiu diferente.
A criatura às costas deles estremeceu e gemeu, e Harry e Dumbledore continuaram sentados, sem falar, fazendo a pausa mais demorada até aquele momento. A compreensão do que aconteceria a seguir foi pouco a pouco se consolidando em Harry, nesses longos minutos, como a neve caindo suavemente.
— Tenho que voltar, não é?
— Isto depende de você.
— Tenho opção?
— Ah, sim. — Dumbledore sorriu. — Estamos em King’s Cross, não foi o que você disse? Acho que, se decidir não voltar, você poderia... digamos... tomar um trem.
— E aonde ele me levaria?
— Em frente — respondeu Dumbledore, com simplicidade. Novo silêncio.
— Voldemort tem a Varinha das Varinhas.
— Verdade. Voldemort tem a Varinha das Varinhas.
— Mas o senhor quer que eu volte?
— Acho que se você escolher voltar, há uma chance de que ele seja liquidado para sempre. Não posso prometer. Mas de uma coisa eu sei, Harry, você tem menos a temer do que ele ao retornarem para cá.
Harry tornou a relancear a coisa em carne viva que tremia e engasgava na sombra, sob a cadeira distante.
— Não tenha piedade dos mortos, Harry. Tenha piedade dos vivos e, acima de tudo, dos que vivem sem amor. Ao regressar, você poderá assegurar que menos almas serão mutiladas, menos famílias serão destroçadas. Se isso lhe parecer um objetivo meritório, então, por ora, diremos adeus.
Harry assentiu e suspirou. Deixar esse lugar não seria tão difícil quanto fora entrar na Floresta, mas ali era quente, claro e tranqüilo, e ele sabia que estaria voltando à dor e ao temor de outras perdas. Ele se ergueu, Dumbledore o acompanhou, e os dois se fitaram demoradamente.
— Me diga uma última coisa — disse Harry. — Isso é real? Ou esteve acontecendo apenas em minha mente?
Dumbledore lhe deu um grande sorriso, e sua voz pareceu alta e forte aos ouvidos de Harry, embora a névoa clara estivesse baixando e ocultando seu vulto.
— Claro que está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isto significaria que não é real?
36
A falha no plano
Harry estava novamente deitado com o rosto no chão. O cheiro da Floresta enchia suas narinas. Ele sentia a terra dura e fria sob sua face, e a dobradiça dos seus óculos, deslocados para um lado durante a queda, cortando sua têmpora. Cada centímetro do seu corpo doía, e, no ponto em que a Maldição da Morte o atingira, parecia ter levado um murro de punho de ferro. Ele não se mexeu, manteve-se exatamente onde caíra, com o braço esquerdo dobrado em um ângulo estranho e a boca aberta.
Esperara ouvir vivas de triunfo e júbilo por sua morte, mas, em vez disso, o ar se encheu de passos apressados, sussurros e murmúrios solícitos.
— Milorde... milorde...
Era a voz de Belatriz, como se falasse a um amante. Harry não ousou abrir os olhos, deixou seus outros sentidos explorarem a situação. Sabia que a varinha continuava guardada sob suas vestes porque a sentia espremida entre seu peito e o chão. Um fino acolchoamento na área do estômago lhe informava que a Capa da Invisibilidade também estava ali, escondida.
— Milorde...
— Agora chega. — Ele ouviu a voz de Voldemort.
Mais passos: várias pessoas estavam retrocedendo do mesmo lugar. Desesperado para ver o que estava acontecendo, e por quê, Harry entreabriu os olhos um milímetro.
Aparentemente, Voldemort estava se levantando. Vários Comensais da Morte se afastavam depressa dele, reintegrando a multidão à volta da clareira. Somente Belatriz continuou ali, ajoelhada ao lado de Voldemort.
Harry fechou os olhos e considerou o que vira. Os Comensais da Morte tinham se aglomerado em torno de Voldemort, que, pelo visto, caíra ao chão. Algo havia ocorrido quando atingira Harry com a Maldição da Morte. Teria tombado também? Parecia provável. Ambos teriam caído, momentaneamente desacordados, e agora ambos recobravam os sentidos...
— Milorde, me deixe...
— Não preciso de sua ajuda — respondeu Voldemort, friamente, e, embora não pudesse ver, Harry visualizou Belatriz, solícita, afastando a mão. — O garoto... está morto?
Fez-se absoluto silêncio na clareira. Ninguém se aproximou de Harry, mas ele sentiu que os olhares se concentravam nele, pareciam empurrá-lo mais fundo no chão, e apavorou-se que uma pálpebra ou um dedo seus pudessem mexer.
— Você — disse Voldemort, e houve um estampido e um gritinho de dor. — Examine-o. Me diga se está morto.
Harry não sabia quem ele mandara verificar. Só lhe restava ficar parado, com o coração batendo forte, traindo-o, e aguardar ser examinado, mas, ao mesmo tempo, registrando, embora isso não fosse grande consolo, que Voldemort tomava a precaução de não se aproximar dele, que Voldemort suspeitava que tivesse havido uma falha no plano...
Mãos, mais leves do que imaginara, tocaram o seu rosto, ergueram uma pálpebra, se introduziram sob sua camisa e sentiram seu coração. Ele ouvia a respiração rápida da mulher, seus longos cabelos fizeram cócegas em seu rosto. Harry sabia que ela ouvia a pulsação ritmada da vida contra suas costelas.
— Draco está vivo? Está no castelo?
O sussurro era apenas audível; os lábios dela estavam a meros centímetros do seu ouvido, sua cabeça tão curvada que a cabeleira protegia seu rosto dos espectadores.