Harry se sentiu atormentado, confuso, e Hermione não ajudou muito ao perguntar amedrontada:
— A sua cicatriz novamente? Afinal, que está acontecendo? Pensei que essa ligação tivesse sido fechada!
— Fechou, por algum tempo — murmurou Harry; sua cicatriz ainda doía dificultando a concentração. — Acho que recomeçou a abrir, sempre que ele se descontrola, é como costumava...
— Então, você tem que fechar sua mente! — disse Hermione esganiçada. — Harry, Dumbledore não queria que você usasse essa ligação, queria que você a fechasse, é para isso que devia usar a Oclumência! Do contrário, Voldemort pode plantar falsas imagens em sua mente, lembra...
— Lembro, sim, obrigado — respondeu o garoto entre os dentes; não precisava que Hermione lhe dissesse que Voldemort já usara essa mesma ligação entre eles para atraí-lo a uma armadilha, nem que isso causara a morte de Sirius. Desejou que não tivesse contado aos amigos o que sentira e vira; isso tornara Voldemort mais ameaçador, como se ele estivesse forçando a janela da sala. A dor em sua cicatriz estava aumentando e ele a repelia: era como se resistisse ao impulso de enjoar.
Ele deu as costas a Rony e Hermione, fingindo examinar a velha tapeçaria com a árvore genealógica da família Black pendurada na parede. Então Hermione deu um grito agudo: Harry sacou a varinha e se virou, um Patrono prateado entrou pela janela da sala de visitas e aterrissou no chão diante deles, onde assumiu a forma de uma doninha e a voz do pai de Rony.
— Família a salvo, não responda, estamos sendo vigiados.
O Patrono se dissolveu no ar. Rony deixou escapar um som entre um choro e um gemido e se largou no sofá: Hermione sentou-se com ele, apertando seu braço.
— Eles estão bem, eles estão bem! — sussurrou ela, e Rony ao mesmo tempo ria e a abraçava.
— Harry — disse ele por cima do ombro de Hermione —, eu...
— Não tem problema — respondeu Harry nauseado de dor na cabeça. — É sua família, claro que está preocupado. Eu sentiria o mesmo. — Lembrou-se de Gina. — Eu sinto o mesmo.
A dor em sua cicatriz foi atingindo o auge, queimando como no jardim d’A Toca. Ao longe, ele ouviu Hermione dizer:
— Eu não quero ficar sozinha. Podemos usar os sacos de dormir que trouxemos e acampar aqui hoje à noite?
Ele ouviu Rony concordar. Não conseguiria resistir à dor por mais tempo: tinha que se entregar.
— Banheiro — murmurou e saiu da sala o mais depressa que pôde, sem correr.
Quase não chegou lá. Trancando a porta com as mãos trêmulas, ele agarrou a cabeça latejante e se largou no chão. Então, em uma explosão de agonia, sentiu a raiva que não lhe pertencia se apoderar de sua alma, viu uma sala comprida, iluminada apenas pela lareira, e o Comensal grandalhão e louro no chão, berrando e se contorcendo, e um vulto mais leve em pé ao lado dele, empunhando a varinha, e Harry falando com uma voz fria e cruel.
— Mais, Rowle, ou vamos encerrar logo e dar você para Nagini comer? Lord Voldemort não tem certeza se desta vez irá lhe perdoar... Foi para isso que me chamou, para me dizer que Harry Potter tornou a escapar? Draco, dê a Rowle mais uma amostra do nosso desagrado... faça isso ou sinta pessoalmente a minha ira!
Uma tora de madeira caiu na lareira: as chamas se avivaram, sua claridade bateu no rosto pálido, aterrorizado e fino... com a sensação de emergir de águas profundas, Harry arquejou várias vezes e abriu os olhos.
Estava estatelado no frio piso de mármore negro, seu nariz a centímetros de um dos rabos de serpente prateados que sustentavam a grande banheira. Sentou-se. O rosto magro e petrificado de Malfoy parecia gravado em sua retina. Harry se sentiu nauseado com a cena que vira, com o uso que Voldemort estava fazendo de Draco.
Houve uma forte batida na porta e Harry se sobressaltou ao ouvir a voz de Hermione.
— Harry, você quer a sua escova de dentes? Eu a trouxe.
— Quero, beleza, obrigado — disse ele, procurando manter a voz descontraída ao se levantar para deixar a amiga entrar.
10
A história de monstro
Harry acordou na manhã seguinte, dentro de um saco de dormir no chão da sala de visitas. Viu uma lasca de céu entre as pesadas cortinas: era um azul frio e claro de tinta aguada, entre a noite e a alvorada, e tudo estava silencioso, exceto pela respiração lenta e profunda de Hermione e Rony. Harry olhou para as sombras escuras que eles projetavam no chão ao seu lado. Rony teve um acesso de galanteria e insistiu que Hermione dormisse sobre as almofadas do sofá, por isso a silhueta dela estava acima da dele. O braço da garota formava um arco até o chão, seus dedos a centímetros dos de Rony. Harry ficou imaginando se teriam adormecido de mãos dadas. A idéia fez com que se sentisse estranhamente solitário.
Ele ergueu os olhos para o teto sombreado, o lustre coberto de teias de aranha. A menos de vinte e quatro horas, estivera parado à entrada ensolarada de uma tenda, aguardando para conduzir os convidados do casamento aos seus lugares. Parecia que tinha sido em outra vida. Que iria acontecer agora? Deitado ali no chão, ele pensou nas Horcruxes, na missão assustadora e complexa que Dumbledore lhe deixara... Dumbledore...
O pesar que o possuíra desde a morte do diretor agora era diferente. As acusações que ouvira de Muriel na festa pareciam ter se aninhado em seu cérebro, como coisas doentias que infectavam suas lembranças do bruxo que idolatrava. Teria Dumbledore deixado aquelas coisas acontecerem? Teria agido como Duda, contente em observar o abandono e o abuso desde que não o afetassem? Poderia ter dado as costas a uma irmã que estava presa e escondida?
Harry pensou em Godric’s Hollow, nos túmulos que Dumbledore jamais mencionara; pensou nos objetos misteriosos deixados, sem explicação, no testamento do diretor, e o seu ressentimento cresceu na obscuridade. Por que Dumbledore não lhe contara? Por que não lhe explicara? Teria tido real afeição por ele? Ou Harry tinha sido apenas um instrumento a ser polido e afinado, sem, no entanto, merecer confiança ou confidências?
O garoto não suportou ficar deitado ali, tendo por companhia apenas seus pensamentos amargurados. Desesperado para arranjar o que fazer e se distrair, deslizou para fora do saco de dormir, apanhou a varinha e saiu furtivamente da sala. No corredor, sussurrou: “Lumus”, e começou a subir a escada à luz da varinha.
No segundo patamar ficava o quarto em que ele e Rony tinham dormido na última vez que estiveram na casa; ele espiou para dentro. As portas dos guarda-roupas estavam abertas e as roupas de cama tinham sido arrancadas. Harry se lembrou da perna de trasgo caída no chão da entrada. Alguém revistara a casa desde que a Ordem a deixara. Snape? Ou talvez Mundungo, que afanara muita coisa antes e depois da morte de Sirius? O olhar de Harry vagueou até o porta-retratos onde por vezes aparecia Fineus Nigellus Black, o tetravô de Sirius, mas estava vazio, exibia apenas um pedaço de forro encardido. Era evidente que Fineus Nigellus estava passando a noite no gabinete do diretor de Hogwarts.
Harry continuou a subir a escada até o último patamar onde havia apenas duas portas. A que estava à sua frente tinha uma plaquinha em que se lia Sirius. O garoto jamais entrara no quarto do padrinho. Ele empurrou a porta, erguendo a varinha no alto para poder iluminar a maior área possível.
O quarto era espaçoso e, antigamente, devia ter sido bonito. Havia uma larga cama com a cabeceira de madeira entalhada, uma janela alta sombreada por compridas cortinas de veludo e um lustre coberto por uma espessa camada de pó, com tocos de velas ainda nos suportes, a cera grossa pendendo como pingos de gelo. Uma fina película de poeira cobria os quadros nas paredes e a cabeceira da cama; uma teia de aranha se estendia do lustre ao topo do grande guarda-roupa, e, quando Harry entrou no quarto, ouviu o tropel de camundongos assustados.
O adolescente Sirius tinha colado nas paredes tantos pôsteres e fotos que deixara visível muito pouco da seda cinza-prateado que a forrava. Harry só pôde supor que os pais de Sirius não tinham conseguido remover o Feitiço Adesivo Permanente que os mantinha colados à parede, porque dificilmente eles teriam apreciado o gosto do filho mais velho em matéria de decoração. Sirius parecia ter saído do caminho para aborrecer os pais. Havia uma coleção de grandes flâmulas da Grifinória, vermelho desbotado e ouro, somente para enfatizar como ele era diferente do resto da família Sonserina. Havia muitas fotos de motos trouxas e também (Harry tinha que admirar a coragem de Sirius) vários pôsteres de garotas trouxas de biquíni; Harry sabia que eram trouxas porque não se mexiam nas fotos, seus sorrisos eram desbotados e os olhos vidrados pareciam congelados no papel. Faziam um contraste com a única foto bruxa que havia nas paredes, a de quatro alunos de Hogwarts em pé, de braços dados, rindo para o fotógrafo.