— Há um jeito mais fácil — disse Hermione, enquanto Harry limpava os dedos sujos de tinta no jeans. Ela ergueu a varinha e ordenou: — Accio medalhão!
Nada aconteceu. Rony, que estivera procurando nas dobras das cortinas desbotadas, pareceu desapontado.
— Então é isso? Não está aqui?
— Ah, poderia até estar aqui, mas protegido por contrafeitiços — respondeu a garota. — Feitiços para impedir que se possa convocá-lo por magia, entende.
— Como o que Voldemort lançou na bacia de pedra na caverna -afirmou Harry, lembrando que não conseguira convocar o falso medalhão.
— Como vamos encontrá-lo, então? — perguntou Rony.
— Procurando com as mãos — respondeu Hermione.
— É uma boa idéia — disse Rony, virando os olhos para o teto e retomando o exame das cortinas. Eles verificaram cada centímetro do quarto durante mais de uma hora, mas foram forçados a concluir que o medalhão não estava ali.
Agora o sol já nascera; a luz os ofuscava mesmo através das cortinas sujas dos corredores.
— Mas poderia estar em qualquer outro lugar da casa — sugeriu Hermione, em um tom de convocação, ao descerem as escadas. Enquanto os dois garotos tinham ficado mais desanimados, ela ficara mais decidida. — Quer ele tenha conseguido ou não destruir o medalhão, iria querer escondê-lo de Voldemort, não acham? Lembram aquelas lixarias todas de que precisamos nos livrar quando estivemos aqui na última vez? Aquele relógio que lançava raios e aquelas vestes velhas que tentaram estrangular Rony; Régulo talvez as tivesse posto lá para proteger o esconderijo do medalhão, ainda que a gente não tenha entendido à... à...
Harry e Rony olharam para Hermione. Ela estava parada com um pé no ar e a expressão abobada de alguém que acabou de ser obliviado; seus olhos tinham até saído de foco.
— ... a época — terminou ela em um sussurro.
— Algum problema? — perguntou Rony.
— Havia um medalhão.
— Quê?! — exclamaram os dois garotos ao mesmo tempo.
— No armário da sala de visitas. Ninguém conseguiu abri-lo. E nós... nós...
Harry teve a sensação de que um tijolo tinha escorregado do seu peito para o estômago. Lembrou-se: tinha até manuseado o objeto quando passou de mão em mão, todos experimentando abri-lo. Por fim, fora atirado em um saco de lixo, junto com a caixa de pó de verrugueira e a caixa de música que deixou todo mundo com sono...
— Monstro pegou montes dessas coisas escondido de nós — disse Harry. Era a única chance, a única e tênue esperança que lhes restava, e o garoto ia se apegar a ela até que fosse forçado a abandoná-la. — Ele tinha um verdadeiro tesouro escondido no armário da cozinha. Vamos.
Harry desceu correndo a escada de dois em dois degraus, com os amigos em sua cola fazendo a escada reboar. O barulho foi tamanho que acordaram o retrato da mãe de Sirius ao atravessarem o corredor da entrada.
— Lixo! Sangues-ruins! Ralé! — gritou a bruxa para os garotos quando desceram desembestados para a cozinha do porão e bateram a porta ao entrar.
Harry continuou sua corrida pelo aposento, parou derrapando à porta do armário de Monstro e abriu-o com violência. Lá estava o ninho de sujeira, as mantas velhas em que o elfo costumava dormir, mas o armário já não brilhava com as quinquilharias que Monstro salvara. Havia apenas um velho exemplar de A nobreza naturaclass="underline" uma genealogia dos bruxos. Recusando-se a crer no que via, Harry puxou as cobertas e sacudiu-as. Delas caiu um camundongo morto que rolou lugubremente pelo chão. Rony gemeu ao se atirar em uma cadeira da cozinha; Hermione fechou os olhos.
— Ainda não terminou — disse Harry, e erguendo a voz berrou: — Monstro!
Ouviram um forte estalo e o elfo doméstico, que relutantemente Harry herdara de Sirius, apareceu de repente diante da lareira vazia e fria: minúsculo, metade da altura de um homem, a pele pálida em pelancas, os cabelos brancos brotando em tufos das orelhas de morcego. Ainda usava os trapos imundos em que o tinham conhecido, e o olhar de desprezo que lançou a Harry demonstrou que sua atitude, com a transferência de dono, tal como os seus trajes, não havia mudado.
— Meu senhor — coaxou Monstro com a sua voz de rã-touro, e ele fez uma profunda reverência, resmungando para os próprios joelhos —, de volta à velha casa da minha senhora com o traidor do sangue Weasley e a sangue-ruim...
— Proíbo você de chamar quem quer que seja de “traidor do sangue” ou de “sangue-ruim” — rosnou Harry. Teria achado Monstro, com seu nariz trombudo e seus olhos injetados, um objeto decididamente repulsivo mesmo se o elfo não tivesse entregado Sirius a Voldemort.
— Tenho uma pergunta a lhe fazer — continuou Harry, o coração acelerando ao olhar para o elfo —, e ordeno que me responda a verdade. Entendeu?
— Sim, meu senhor — respondeu Monstro fazendo nova reverência: Harry viu seus lábios se moverem em silêncio, sem dúvida mastigando os insultos que fora proibido de proferir.
— Dois anos atrás — disse Harry, seu coração agora reboando nas costelas —, havia um medalhão de ouro na sala de visitas lá em cima. Nós o jogamos fora. Você o pegou de volta?
Houve um momento de silêncio em que Monstro se aprumou para encarar Harry. Em seguida respondeu:
— Peguei.
— Onde está o medalhão agora? — tornou o garoto exultando, sob o olhar animado de Rony e Hermione.
Monstro fechou os olhos como se não pudesse suportar ver aquelas reações à sua resposta.
— Foi-se.
— Foi-se? — repetiu Harry, a euforia se dissipando. — Que quer dizer com esse “foi-se”?
O elfo estremeceu. Cambaleou.
— Monstro — disse Harry ameaçador —, ordeno que você...
— Mundungo Fletcher roubou tudo: os retratos da srta. Bela e da srta. Ciça, as luvas da minha senhora, a Ordem de Merlim, Primeira Classe, as taças de vinho com o brasão da família e, e...
Monstro tentava recuperar o fôlego: seu peito cavado subia e descia rapidamente, então seus olhos se arregalaram e ele soltou um grito de congelar o sangue.
— ... e o medalhão, o medalhão do meu senhor Régulo, Monstro agiu mal, Monstro desobedeceu às ordens dele!
Harry reagiu instintivamente: quando Monstro mergulhou para apanhar o atiçador na grelha da lareira, ele se atirou sobre o elfo e achatou-o no chão. O grito de Hermione se misturou ao de Monstro, mas Harry berrou mais alto que os dois:
— Monstro, ordeno que você fique parado!
Ele sentiu o elfo se imobilizar e soltou-o. Monstro ficou estatelado no piso frio, as lágrimas saltando dos seus olhos empapuçados.
— Harry, deixe ele levantar! — sussurrou Hermione.
— Para ele poder se espancar com o atiçador? — bufou Harry, se ajoelhando ao lado do elfo. — Acho que não. Certo, Monstro, quero a verdade: como sabe que Mundungo Fletcher roubou o medalhão?
— Monstro viu! — exclamou ele, as lágrimas escorrendo do nariz para a boca cheia de dentes cinzentos. — Monstro viu ele saindo do armário, as mãos cheias com os tesouros de Monstro. Monstro mandou o larápio parar, mas Mundungo Fletcher riu e c-correu...
— Você disse que o medalhão era do seu senhor Régulo. Por quê? De onde veio o medalhão? Qual era a ligação de Régulo com ele? Monstro, sente-se e me conte tudo que sabe sobre aquele medalhão, tudo que o ligava a Régulo!
O elfo sentou, enroscado como uma bola, apoiou o rosto molhado entre os joelhos e começou a se balançar para a frente e para trás. Quando falou, sua voz saiu abafada, mas bastante clara no silêncio da cozinha vazia.
— Meu senhor Sirius fugiu, ainda bem, porque ele era um garoto ruim e despedaçou o coração da minha senhora com a sua rebeldia. Mas meu senhor Régulo tinha orgulho; sabia reverenciar o nome Black e a dignidade do seu sangue puro. Durante anos ele falou do Lorde das Trevas, que ia tirar os bruxos da clandestinidade e dominar os trouxas e os nascidos trouxas... e quando fez dezesseis anos, meu senhor Régulo se reuniu ao Lorde das Trevas. Tão orgulhoso, tão orgulhoso, tão feliz de servir...